A Chave
NĂŁo sei se lhes diga simplesmente que era de madrugada, ou se comece num tom mais poĂ©tico: a aurora, com seus rĂłseos dedos... A maneira simples Ă© o que melhor me conviria a mim, ao leitor, aos banhistas que estĂŁo agora na praia do Flamengo - agora, isto Ă©, no dia 7 de outubro de 1861, que Ă© quando tem princĂpio este caso que lhes vou contar. Convinha-nos isto; mas hĂĄ lĂĄ um certo velho, que me nĂŁo leria, se eu me limitasse a dizer que vinha nascendo a madrugada, um velho que... Digamos quem era o velho.
Imaginem os leitores um sujeito gordo, nĂŁo muito gordo - calvo, de Ăłculos, tranquilo, tardo, meditativo. Tem sessenta anos: nasceu com o sĂ©culo. Traja asseadamente um vestuĂĄrio da manhĂŁ; vĂȘ-se que Ă© abastado ou exerce algum alto emprego na administração. SaĂșde de ferro. Disse jĂĄ que era calvo; equivale a dizer que nĂŁo usava cabeleira. Incidente sem valor, observarĂĄ a leitora, que tem pressa. Ao que lhe replico que o incidente Ă© grave, muito grave, extraordinariamente grave. A cabeleira devia ser o natural apĂȘndice da cabeça do major Caldas, porque cabeleira traz ele no espĂrito, que tambĂ©m Ă© calvo.
Calvo Ă© o espĂrito. O major Caldas cultivou as letras, desde 1821 atĂ© 1840 com um ardor verdadeiramente deplorĂĄvel. Era poeta; compunha versos com presteza, retumbantes, cheios de adjetivos, cada qual mais calvo do que ele tinha de ficar em 1861. A primeira poesia foi dedicada a nĂŁo sei que outro poeta, e continha em gĂ©rmen todas as odes e glosas que ele havia de produzir. NĂŁo compreendeu nunca o major Caldas que se pudesse fazer outra coisa que nĂŁo glosas e odes de toda a casta, pindĂĄricas ou horacianas, e tambĂ©m idĂlios piscatĂłrios, obras perfeitamente legĂtimas na aurora literĂĄria do major. Nunca para ele houve poesia que pudesse competir com a de um Dinis ou Pimentel Maldonado; era a sua cabeleira do espĂrito.
Ora, é certo que o major Caldas, se eu dissesse que era de madrugada, dar-me-ia um muxoxo ou franziria a testa com desdém. "Madrugada! Era de madrugada!", murmuraria ele. "Isto diz aà qualquer preta: Žnhanhã, era de madrugada...`. Os jornais não dizem de outro modo; mas numa novela..."
Vå pois! A aurora, com seus dedos cor-de-rosa, vinha rompendo as cortinas do oriente, quando Marcelina levantou a cortina da barraca. A porta da barraca olhava justamente para o oriente, de modo que não hå inverossimilhança em lhes dizer que essas duas auroras se contemplaram por um minuto. Um poeta arcådico chegaria a insinuar que a aurora celeste enrubesceu de despeito e raiva. Seria porém levar a poesia muito longe.
Deixemos a do céu e venhamos à da terra. Lå estå ela, à porta da barraca com as mãos cruzadas no peito, como quem tem frio; traja a roupa usual das banhistas, roupa que só då elegùncia a quem jå a tiver em subido grau. à o nosso caso.
Assim, Ă meia-luz da manhĂŁ nascente, nĂŁo sei se poderĂamos vĂȘ-la de modo claro. NĂŁo; Ă© impossĂvel. Quem lhe examinaria agora aqueles olhos Ășmidos, como as conchas da praia, aquela boca pequenina, que parece um beijo perpĂ©tuo? Vede, porĂ©m, o talhe, a curva amorosa das cadeiras, o trecho de perna que aparece entre a barra da calça de flanela e o tornozelo; digo o tornozelo e nĂŁo o sapato porque Marcelina nĂŁo calça sapatos de banho. Costume ou vaidade? Pode ser costume; se for vaidade Ă© explicĂĄvel porque o sapato esconderia e mal os pĂ©s mais graciosos de todo o Flamengo, um par de pĂ©s finos, esguios, ligeiros. A cabeça tambĂ©m nĂŁo leva coifa; tem os cabelos atados em parte, em parte trançados - tudo desleixadamente, mas de um desleixo voluntĂĄrio e casquilho.
Agora, que a luz estĂĄ mais clara, podemos ver bem a expressĂŁo do rosto. Ă uma expressĂŁo singular de pomba e gato, de mimo e desconfiança. HĂĄ olhares dela que atraem, outros que distanciam - uns que inundam a gente, como um bĂĄlsamo, outros que penetram como uma lĂąmina. Ă desta Ășltima maneira que ela olha para um grupo de duas moças, que estĂŁo Ă porta de outra barraca, a falar com um sujeito.
- Lambisgoias! - murmura entre dentes.
- Que é? - pergunta o pai de Marcelina, o major Caldas, sentado ao pé da barraca, numa cadeira que o moleque lhe leva todas as manhãs.
- Que Ă© o quĂȘ? - diz a moça.
- Tu falaste alguma coisa.
- Nada.
- EstĂĄs com frio?
- Algum.
- Pois olha, a manhĂŁ estĂĄ quente.
- Onde estå o José?
O JosĂ© apareceu logo; era o moleque que a acompanhava ao mar. Aparecido o JosĂ©, Marcelina caminhou para o mar, com um desgarro de moça bonita e superior. Da outra barraca tinham jĂĄ saĂdo as duas moças que lhe mereceram tĂŁo desdenhosa classificação; o rapaz que estava com elas tambĂ©m entrara no mar. Outras cabeças e bustos surgiram da ĂĄgua, como um grupo de delfins. Da praia alguns olhos, puramente curiosos, se estendiam aos banhistas ou cismavam puramente contemplando o espetĂĄculo das ondas que se dobravam e desdobravam, ou - como diria o major Caldas - as convulsĂ”es de Anfitrite.
O major ficou sentado a ver a filha, com o Jornal do Commercio aberto sobre os joelhos; tinha jĂĄ luz bastante para ler as notĂcias; mas nĂŁo o fazia nunca antes de voltar a filha do banho. Isto por duas razĂ”es. Era a primeira a prĂłpria afeição de pai; apesar da confiança na destreza da filha, receava algum desastre. Era a segunda o gosto que lhe dava contemplar a graça e a habilidade com que Marcelina mergulhava, bracejava ou simplesmente boiava "como uma nĂĄiade", acrescentava ele se falava disso a algum amigo.
Acresce que o mar, naquela manhĂŁ, estava muito mais bravio que de costume; a ressaca era forte; os buracos da praia, mais fundos; o medo afastava vĂĄrios banhistas habituais.
- NĂŁo te demores muito - disse o major, quando a filha entrou -; toma cuidado.
Marcelina era destemida; galgou a linha em que se dava a arrebentação, e surdiu fora muito naturalmente. O moleque, aliås bom nadador, não rematou a façanha com igual placidez; mas galgou também e foi surgir ao lado da sinhå-moça.
- Hoje o bicho nĂŁo estĂĄ bom - ponderou um banhista ao lado de Marcelina, um homem maduro, de suĂças, ar aposentado.
- Parece que não - disse a moça -; mas para mim é o mesmo.
- O major continua a nĂŁo gostar d'ĂĄgua salgada? - perguntou uma senhora.
- Diz que Ă© militar de terra e nĂŁo do mar - replicou Marcelina -, mas eu creio que papai o que quer Ă© ler o Jornal Ă vontade.
- Podia vir lĂȘ-lo aqui - insinuou um rapaz de bigodes -, dando uma grande risada de aplauso a si mesmo.
Marcelina nem olhou para ele; mergulhou diante de uma onda, surdiu fora, com as mĂŁos sacudiu os cabelos. O sol, que jĂĄ entĂŁo aparecera, alumiava-a nessa ocasiĂŁo, ao passo que a onda, seguindo para a praia, deixava-lhe todo o busto fora de ĂĄgua. Foi assim que a viu, pela primeira vez, com os cabelos Ășmidos, e a flanela grudada ao busto - ao mais correto e virginal busto daquelas praias -, foi assim que pela primeira vez a viu o Bastinhos - o LuĂs Bastinhos -, que acabava de entrar no mar, para tomar o primeiro banho no Flamengo.
II
A ocasiĂŁo Ă© a menos prĂłpria para apresentar-lhes o Sr. LuĂs Bastinhos; a ocasiĂŁo e o lugar. O vestuĂĄrio entĂŁo Ă© impropriĂssimo. Ao vĂȘ-lo agora, a meio-busto, nem se pode dizer que tenha vestuĂĄrio de nenhuma espĂ©cie. Emerge-lhe a parte superior do corpo, boa musculatura, pele alva, mal coberta de alguma penugem. A cabeça Ă© que nĂŁo precisa dos arrebiques da civilização para dizer-se bonita. NĂŁo hĂĄ cabeleireiro, nem Ăłleo, nem pente, nem ferro que no-la ponham mais graciosa. Ao contrĂĄrio, a expressĂŁo fisionĂŽmica de LuĂs Bastinhos acomoda-se melhor a esse desalinho agreste e marĂtimo. Talvez perca, quando se pentear. Quanto ao bigode, fino e curto, os pingos d`ĂĄgua que ora lhe escorrem nĂŁo chegam a diminuĂ-lo; nĂŁo chegam sequer a ver-se. O bigode persiste como dantes.
NĂŁo o viu Marcelina, ou nĂŁo reparou nele. O LuĂs Bastinhos Ă© que a viu, e mal pĂŽde disfarçar a admiração. O major Caldas, se os observasse, era capaz de casĂĄ-los, sĂł para ter o gosto de dizer que unia uma nĂĄiade a um tritĂŁo. Nesse momento a nĂĄiade repara que o tritĂŁo tem os olhos fitos nela, e mergulha, depois mergulha outra vez, nada e boia. Mas o tritĂŁo Ă© teimoso, e nĂŁo lhe tira os olhos de cima.
"Que importuno!", diz ela consigo.
- Olhem uma onda grande - brada um dos conhecidos de Marcelina.
Todos se puseram em guarda, a onda enrolou alguns, mas passou sem maior dano. Outra veio e foi recebida com um alarido alegre; enfim veio uma mais forte, e assustou algumas senhoras. Marcelina riu-se delas.
- Nada - dizia uma -; salvemos o pelo; o mar estĂĄ ficando zangado.
- Medrosa! - acudiu Marcelina.
- Pois sim...
- Querem ver? - continuou a filha do major -. Vou mandar embora o moleque.
- Não faça isso, D. Marcelina - acudiu o banhista de ar aposentado.
- Não faço outra coisa. José, vai-te embora.
- Mas, nhanhĂŁ...
- Vai-te embora!
O José ainda esteve alguns segundos, sem saber o que fizesse; mas parece que, entre desagradar ao pai ou à filha, achou mais arriscado desagradar à filha, e caminhou para terra. Os outros banhistas tentaram persuadir à moça que devia vir também, mas era tempo baldado. Marcelina tinha a obstinação de um enfant gùté. Lembraram alguns que ela nadava como um peixe, e resistira muita vez ao mar.
- Mas o mar do Flamengo Ă© o diabo - ponderou uma senhora.
Os banhistas pouco a pouco foram deixando o mar. Do lado de terra, o major Caldas, de pé, ouvia impaciente a explicação do moleque, sem saber se o devolveria à ågua ou se cumpriria a vontade da filha; limitou-se a soltar palavras de enfado.
- Santa Maria! - exclamou de repente o José.
- Que foi? - disse o major.
O JosĂ© nĂŁo lhe respondeu; atirou-se Ă ĂĄgua. O major olhou e nĂŁo viu a filha. Efetivamente, a moça, vendo que no mar sĂł ficava o desconhecido, nadou para terra, mas as ondas tinham-se sucedido com frequĂȘncia e impetuosidade. No lugar da arrebentação foi envolvida por uma; nesse momento Ă© que o moleque a viu.
- Minha filha! - bradou o major.
E corria desatinado pela areia, enquanto o moleque conscienciosamente buscava penetrar no mar. Mas era jĂĄ empresa escabrosa; as ondas estavam altas, fortes e a arrebentação, terrĂvel. Outros banhistas acudiram tambĂ©m a salvar a filha do major; mas a dificuldade era sĂł uma para todos. Caldas ora implorava, ora ordenava ao moleque que lhe restituĂsse a filha. Enfim, JosĂ© conseguiu entrar no mar. Mas jĂĄ entĂŁo lutava ali, junto ao funesto lugar, o desconhecido banhista que tanto aborrecera a filha do major. Este estremeceu de alegria, de esperança, quando viu que alguĂ©m forcejava por arrancar a moça da morte. Na verdade, o vulto de Marcelina apareceu nos braços do LuĂs Bastinhos; mas uma onda veio e os enrolou a ambos. Nova luta, novo esforço; e desta vez definitivo triunfo. LuĂs Bastinhos chegou Ă praia arrastando consigo a moça.
- Morta! - exclamou o pai correndo a vĂȘ-la.
Examinaram-na.
- NĂŁo, desmaiada, apenas.
Com efeito, Marcelina perdera os sentidos, mas nĂŁo morrera. Deram-lhe os socorros mĂ©dicos; ela voltou a si. O pai, singelamente alegre, apertou LuĂs Bastinhos ao coração.
- Devo-lhe tudo! - disse ele.
- A sua felicidade me paga de sobra - tornou o moço.
O major fitou-o alguns instantes; impressionara-o a resposta. Depois apertou-lhe a mĂŁo e ofereceu-lhe a casa. LuĂs Bastinhos retirou-se antes que Marcelina pudesse vĂȘ-lo.
III
Na verdade, se a leitora gosta de lances romanescos, aĂ fica um, com todo o valor das antigas novelas, e pode ser tambĂ©m que dos dramalhĂ”es antigos. Nada falta: o mar, o perigo, uma dama que se afoga, um desconhecido que a salva, um pai que passa da extrema aflição ao mais doce prazer da vida; eis aĂ com que marchar cerradamente a cinco atos maçudos e sangrentos, rematando tudo com a morte ou a loucura da heroĂna.
Não temos cå nem uma coisa nem outra. A nossa Marcelina não morreu nem morre; doida pode ser que jå fosse, mas de uma doidice branda, a doidice das moças em flor. Ao menos pareceu que tinha alguma coisa disso, quando, naquele mesmo dia, soube que fora salva pelo desconhecido.
- ImpossĂvel! - exclamou.
- Por quĂȘ?
- Foi ele deveras?
- Pois entĂŁo! Salvou-te com perigo da vida prĂłpria; houve um momento, em que eu cuidei que ambos vocĂȘs morriam enrolados na onda.
- Ă a coisa mais natural do mundo - interveio a mĂŁe -; e nĂŁo sei de que te espantas...
Marcelina nĂŁo podia, na verdade, explicar a causa do espanto; ela mesma nĂŁo a sabia. Custava-lhe a crer que LuĂs Bastinhos a tivesse salvo, e isso sĂł porque "embirrara com ele". Ao mesmo tempo, pesava-lhe o obsĂ©quio. NĂŁo quisera ter morrido; mas era melhor que outro a houvesse arrancado ao mar, nĂŁo aquele homem, que afinal era um grande metediço. Marcelina esteve inclinada a crer que LuĂs Bastinhos encomendara o desastre para ter ocasiĂŁo de a servir.
Dois dias depois, Marcelina voltou ao mar, jĂĄ pacificado dos seus furores de encomenda. Ao olhar para ele, teve uns Ămpetos de Xerxes; fĂĄ-lo-ia castigar, se dispusesse de um bom e grande vergalho. NĂŁo tendo o vergalho, preferiu flagelĂĄ-lo com os seus prĂłprios braços, e nadou nesse dia mais tempo e mais fora do que era costume, nĂŁo obstante as recomendaçÔes do major. Levava naquilo um pouco, ou antes, muito de amor-prĂłprio: o desastre envergonhara-a.
O LuĂs Bastinhos, que jĂĄ lĂĄ estava no mar, travou conversação com a filha do major. Era a segunda vez que se viam, e a primeira que se falavam.
- Soube que foi o senhor quem me ajudou... a levantar anteontem - disse Marcelina.
O LuĂs Bastinhos sorriu mentalmente; e ia responder por uma simples afirmativa, quando Marcelina continuou:
- Ajudou, não sei; eu creio que cheguei a perder os sentidos, e o senhor... sim... o senhor foi quem me salvou. Permite-me que lhe agradeça? - concluiu ela, estendendo a mão.
LuĂs Bastinhos estendeu a sua; e ali, entre duas ondas, tocaram-se os dedos do tritĂŁo e da nĂĄiade.
- Hoje o mar estĂĄ manso - disse ele.
- EstĂĄ.
- A senhora nada bem.
- Parece-lhe?
- Perfeitamente.
- Menos mal.
E, como para mostrar a sua arte, Marcelina entrou a nadar para fora, deixando LuĂs Bastinhos. Este, porĂ©m, ou por mostrar que tambĂ©m sabia a arte e que era destemido - ou por nĂŁo privar a moça de pronto socorro, caso houvesse necessidade -, ou enfim (e este motivo pode ter sido o principal, se nĂŁo Ășnico) - para vĂȘ-la sempre de mais perto -, lĂĄ foi na mesma esteira; dentro de pouco era uma espĂ©cie de aposta entre os dois.
- Marcelina -disse-lhe o pai, quando ela voltou a terra - vocĂȘ hoje foi mais longe do que nunca. NĂŁo quero isso, ouviu?
Marcelina levantou os ombros, mas obedeceu ao pai, cujo tom nessa ocasiĂŁo era desusadamente rĂspido. No dia seguinte, nĂŁo foi tĂŁo longe a nadar; a conversar, porĂ©m, foi muito mais longe do que na vĂ©spera. Ela confessou ao LuĂs Bastinhos, ambos com a ĂĄgua atĂ© o pescoço, confessou que gostava muito de cafĂ© com leite, que tinha vinte e um anos, que possuĂa reminiscĂȘncias do Tamberlick, e que o banho do mar seria excelente, se nĂŁo a obrigassem a acordar cedo.
- Deita-se tarde, nĂŁo Ă©? - perguntou o LuĂs Bastinhos.
- Perto de meia-noite.
- Oh! Dorme pouco!
- Muito pouco.
- De dia dorme?
- Ăs vezes.
LuĂs Bastinhos confessou, pela sua parte, que se deitava cedo, muito cedo, desde que estava a banhos de mar.
- Mas quando for ao teatro?
- Nunca vou ao teatro.
- Pois eu gosto muito.
- Também eu; mas enquanto estiver a banhos...
Foi neste ponto que entraram as reminiscĂȘncias do Tamberlick, que Marcelina ouviu, quando criança; e daĂ ao JoĂŁo Caetano, e do JoĂŁo Caetano a nĂŁo sei que outras reminiscĂȘncias, que a um e a outro fez esquecer a higiene e a situação.
IV
Saiamos do mar, que Ă© tempo. A leitora pode desconfiar que o intento do autor Ă© fazer um conto marĂtimo, a ponto de casar os dois herĂłis nos prĂłprios "paços de Anfitrite", como diria o major Caldas. NĂŁo; saiamos do mar. JĂĄ tens muita ĂĄgua, boa Marcelina. Too much of water hast thou, poor Ophelia! A diferença Ă© que a pobre OfĂ©lia lĂĄ ficou, ao passo que tu sais sĂŁ e salva, com a roupa do banho pegada ao corpo, um corpo grego, por Deus! E entras na barraca, e se alguma cousa ouves, nĂŁo sĂŁo as lĂĄgrimas dos teus, sĂŁo os resmungos do major. Saiamos do mar.
Um mĂȘs depois do Ășltimo banho a que o leitor assistiu, jĂĄ o LuĂs Bastinhos frequentava a casa do major Caldas. O major afeiçoara-se-lhe deveras depois que ele lhe salvara a filha. Indagou quem era; soube que estava empregado numa repartição de Marinha, que seu pai, jĂĄ agora morto, fora capitĂŁo-de-fragata e figurara na guerra contra Rosas. Soube mais que era moço bem reputado e decente. Tudo isto realçou a ação generosa e corajosa de LuĂs Bastinhos, e a intimidade começou, sem oposição da parte de Marcelina, que antes contribuiu para ela, com as suas melhores maneiras.
Um mĂȘs era de sobra para arraigar no coração de LuĂs Bastinhos a planta do amor que havia germinado entre duas vagas do Flamengo. A planta cresceu, copou, bracejou ramos a um e outro lado, tomou o coração todo do rapaz, que nĂŁo se lembrava jamais de haver gostado tanto de uma moça. Era o que ele dizia a um amigo de infĂąncia, seu atual confidente.
- E ela? - disse-lhe o amigo.
- Ela... nĂŁo sei.
- NĂŁo sabes?
- Não; creio que não gosta de mim, isto é, não digo que se aborreça comigo; trata-me muito bem, ri muito, mas não gosta... entendes?
- NĂŁo te dĂĄ corda em suma - concluiu o Pimentel, que assim se chamava o amigo confidente -. JĂĄ lhe disseste alguma coisa?
- NĂŁo.
- Por que nĂŁo lhe falas?
- Tenho receio... Ela pode zangar-se e fico obrigado a nĂŁo voltar lĂĄ ou a frequentar menos, e isso para mim seria o diabo.
O Pimentel era uma espĂ©cie de filĂłsofo prĂĄtico, incapaz de suspirar dois minutos pela mais bela mulher do mundo, e menos ainda de compreender uma paixĂŁo como a do LuĂs Bastinhos. Sorriu, estendeu-lhe a mĂŁo em despedida, mas o LuĂs Bastinhos nĂŁo consentiu na separação. Puxou-o, deu-lhe o braço, levou-o a um cafĂ©.
- Mas que diabo queres tu que te faça? - perguntou o Pimentel sentando-se à mesa com ele.
- Que me aconselhes.
- O quĂȘ?
- NĂŁo sei o quĂȘ, mas dize-me alguma cousa - replicou o namorado -. Talvez convenha falar ao pai; que te parece?
- Sem saber se ela gosta de ti?
- Na verdade era imprudĂȘncia - concordou o outro, coçando o queixo com a ponta do dedo Ăndice -; mas talvez goste...
- Pois entĂŁo...
- Porque, eu te digo, ela nĂŁo me trata mal; ao contrĂĄrio, Ă s vezes tem uns modos, umas cousas... mas nĂŁo sei... O major, esse gosta de mim.
- Ah!
- Gosta.
- Pois aĂ tens, casa-te com o major.
- Falemos sério.
- Sério? - repetiu o Pimentel debruçando-se sobre a mesa e encarando o outro. Aqui vai o mais sério que hå no mundo; tu és um... digo?
- Dize.
- Tu és um bolas.
Repetiam-se essas cenas regularmente, uma ou duas vezes por semana. No fim delas o LuĂs Bastinhos prometia duas cousas a si mesmo: nĂŁo dizer mais nada ao Pimentel e ir fazer imediatamente a sua confissĂŁo a Marcelina; poucos dias depois ia confessar ao Pimentel que ainda nĂŁo dissera nada a Marcelina. E o Pimentel abanava a cabeça e repetia o estribilho:
- Tu és um bolas.
V
Um dia assentou LuĂs Bastinhos que era vergonha dilatar por mais tempo a declaração de seus afetos; urgia clarear a situação. Ou era amado ou nĂŁo: no primeiro caso, o silĂȘncio era tolice; no segundo, a tolice era a assiduidade. Tal foi a reflexĂŁo do namorado; tal foi a sua resolução.
A ocasiĂŁo era na verdade propĂcia. O pai ia passar a noite fora; a moça ficara com uma tia surda e sonolenta. Era o sol de Austerlitz; o nosso Bonaparte preparou a sua melhor tĂĄtica. A fortuna deu-lhe atĂ© um grande auxiliar na prĂłpria moça, que estava triste; a tristeza podia dispor o coração a sentimentos benĂ©volos, principalmente quando outro coração lhe dissesse que nĂŁo duvidava beber na mesma taça da melancolia. Esta foi a primeira reflexĂŁo de LuĂs Bastinhos; a segunda foi diferente.
"Por que estarĂĄ ela triste?", perguntou ele a si mesmo.
E eis o dente do ciĂșme a trincar-lhe o coração, e o sangue a esfriar-lhe nas veias, e uma nuvem a cobrir-lhe os olhos. NĂŁo era para menos o caso. NinguĂ©m adivinharia nessa moça quieta e sombria, sentada a um canto do sofĂĄ, a ler as pĂĄginas de um romance, ninguĂ©m adivinharia nela a borboleta ĂĄgil e volĂșvel de todos os dias. Alguma cousa devia ser; talvez a mordesse algum besouro. E esse besouro nĂŁo era decerto o LuĂs Bastinhos; foi o que este pensou e foi o que o entristeceu.
Marcelina ergueu os ombros.
- Alguma cousa que a incomoda? - continuou ele.
Um silĂȘncio.
- NĂŁo?
- Talvez.
- Pois bem - disse LuĂs Bastinhos com calor e animado por aquela meia confidĂȘncia -; pois bem, diga-me tudo, eu saberei ouvi-la e terei palavras de consolação para as suas dores.
Marcelina olhou um pouco espantada para ele, mas a tristeza dominou outra vez e deixou-se estar calada alguns instantes; finalmente pĂŽs-lhe a mĂŁo no braço, e disse que lhe agradecia muito o interesse que mostrava, mas que o motivo de tristeza era-o sĂł para ela e nĂŁo valia a pena contĂĄ-lo. Como LuĂs Bastinhos teimasse para saber o que era, contou a moça que lhe morrera, nessa manhĂŁ, o mico.
LuĂs Bastinhos respirou Ă larga. Um mico! Um simples mico! Era pueril o objeto, mas para quem o esperava terrĂvel, antes assim. Ele entregou-se depois a toda a sorte de consideraçÔes prĂłprias do caso, disse-lhe que nĂŁo valia o bicho a pureza dos belos olhos da moça; e daĂ a escorregar uma insinuação de amor era um quase nada. Ia a fazĂȘ-lo: chegou o major.
Oito dias depois houve em casa do major um sarau - "uma brincadeira" como disse o prĂłprio major. LuĂs Bastinhos foi; estava porĂ©m arrufado com a moça; deixou-se ficar a um canto; nĂŁo se falaram durante a noite inteira.
- Marcelina - disse-lhe no dia seguinte o pai -, acho que tratas Ă s vezes mal o Bastinhos. Um homem que te salvou da morte.
- Que morte?
- Da morte na praia do Flamengo.
- Mas, papai, se a gente fosse a morrer de amores por todas as pessoas que nos salvam da morte...
- Mas quem te fala nisso? Digo que o tratas mal Ă s vezes...
- Ăs vezes, Ă© possĂvel.
- Mas por quĂȘ? Ele parece-me um bom rapaz.
Nada mais lhe respondendo a filha, entrou o major a bater com a ponta do pĂ© no chĂŁo, um pouco enfadado. Um pouco? Talvez muito. Marcelina destruĂa-lhe as esperanças, reduzia-lhe a nada o projeto que ele acalentava desde algum tempo - que era casar os dois; - casĂĄ-los ou uni-los pelos "doces laços do himeneu", que todas foram as suas prĂłprias expressĂ”es mentais. E vai a moça e destrĂłi-lho. O major sentia-se velho, podia morrer, e quisera deixar a filha casada e bem casada. Onde achar melhor marido que o LuĂs Bastinhos?
- Uma pérola - dizia ele a si mesmo.
E enquanto ele ia forjando e desforjando esses projetos, Marcelina suspirava consigo mesma, e sem saber por quĂȘ; mas suspirava. TambĂ©m esta pensava na conveniĂȘncia de casar e casar bem; mas nenhum homem lhe abrira deveras o coração. Quem sabe se a fechadura nĂŁo servia a nenhuma chave? Quem teria a verdadeira chave do coração de Marcelina? Ela chegou a supor que fosse um bacharel da vizinhança, mas esse casou dentro de algum tempo; depois desconfiara que a chave estivesse em poder de um oficial de Marinha. Erro: o oficial nĂŁo trazia chave consigo. Assim andou de ilusĂŁo em ilusĂŁo, e chegou Ă mesma tristeza do pai. Era fĂĄcil acabar com ela: era casar com o Bastinhos. Mas se o Bastinhos, o circunspecto, o melancĂłlico, o taciturno Bastinhos nĂŁo tinha a chave! Equivalia a recebĂȘ-lo Ă porta sem lhe dar entrada no coração.
VI
Cerca de mĂȘs e meio depois fazia anos o major, que, animado pelo sarau precedente, quis comemorar com outro aquele dia. "Outra brincadeira, mas desta vez rija", foram os prĂłprios termos em que ele anunciou o caso ao LuĂs Bastinhos, alguns dias antes.
Pode-se dizer e acreditar que a filha do major nĂŁo teve outro pensamento desde que o pai lho comunicou tambĂ©m. Começou por encomendar um rico vestido, elegeu costureira, adotou corte, coligiu adornos, presidiu a toda essa grande obra domĂ©stica. Joias, flores, fitas, leques, rendas, tudo lhe passou pelas mĂŁos, e pela memĂłria e pelos sonhos. Sim, a primeira quadrilha foi dançada em sonhos, com um belo cavalheiro hĂșngaro, vestido Ă moda nacional, cĂłpia de uma gravura da Ilustração Francesa, que ela vira de manhĂŁ. Acordada, lastimou sinceramente que nĂŁo fosse possĂvel ao pai encomendar, de envolta com os perus da ceia, um ou dois cavalheiros hĂșngaros - entre outros motivos porque eram valsadores interminĂĄveis. E depois tĂŁo bonitos!
- Sabem que eu pretendo dançar no dia 20? - disse o major uma noite, em casa.
- VocĂȘ? - retorquiu-lhe um amigo velho.
- Eu.
- Por que nĂŁo? - assentiu timidamente o LuĂs Bastinhos.
- Justamente - continuou o major voltando-se para o salvador da filha -. E o senhor hĂĄ de ser o meu vis-Ă -vis...
- Eu?
- Não dança?
- Um pouco - retorquiu modestamente o moço.
- Pois hĂĄ de ser o meu vis-Ă -vis.
LuĂs Bastinhos curvou-se como quem obedece a uma opressĂŁo; com a flexibilidade passiva do fatalismo. Se era necessĂĄrio dançar, ele o faria, porque dançava como poucos, e obedecer ao velho era uma maneira de amar a moça. Ai dele! Marcelina olhou-o com tamanho desprezo, que se ele lhe apanha o olhar, nĂŁo Ă© impossĂvel que de uma vez para sempre ali deixasse de pĂŽr os pĂ©s. Mas nĂŁo o viu; continuou a arredĂĄ-los dali bem poucas vezes.
Os convites foram profusamente espalhados. O major Caldas fez o inventårio de todas as suas relaçÔes, antigas e modernas, e não quis que nenhum camarão lhe escapasse pelas malhas: lançou uma rede fina e instante. Se ele não pensava em outra cousa, o velho major! Era feliz; sentia-se poupado da adversidade, quando muitos outros companheiros vira cair, uns mortos, outros extenuados somente. A comemoração de seu aniversårio tinha, portanto, uma significação mui alta e especial; e foi isso mesmo o que ele disse à filha e aos demais parentes.
O Pimentel, que tambĂ©m fora convidado, sugeriu a LuĂs Bastinhos a idĂ©ia de dar um presente de anos ao major.
- JĂĄ pensei nisso - retorquiu o amigo -; mas nĂŁo sei o que lhe dĂȘ.
- Eu te digo.
- Dize.
- DĂĄ-lhe um genro.
- Um genro?
- Sim, um noivo Ă filha; declara o teu amor e pede-a. VerĂĄs que, de todas as dĂĄdivas desse dia, essa serĂĄ a melhor.
LuĂs Bastinhos bateu palmas ao conselho do Pimentel.
- à isso mesmo - disse ele -; eu andava com a idéia em alguma joia, mas...
- Mas a melhor joia és tu mesmo - concluiu o Pimentel.
- NĂŁo digo tanto.
- Mas pensas.
- Pimentel!
- E eu nĂŁo penso outra cousa. Olha, se eu tivesse intimidade na casa, hĂĄ muito tempo que estarias amarrado Ă pequena. Pode ser que ela nĂŁo goste de ti; mas tambĂ©m Ă© difĂcil a uma moça alegre e travessa gostar de um casmurro, como tu - que te sentas, defronte dela, com um ar solene e dramĂĄtico, a dizer em todos os teus gestos: "minha senhora, fui eu que a salvei da morte; deve rigorosamente entregar-me a sua vida..." Ela pensa decerto que estĂĄs fazendo um calembour de mau gosto e fecha-te a porta... LuĂs Bastinhos esteve calado alguns instantes.
- Perdoo-te tudo, a troco do conselho que me deste; vou oferecer um genro ao major.
Dessa vez, como de todas as outras, a promessa era maior do que a realidade; ele lĂĄ foi, lĂĄ tornou, nada fez. Iniciou duas ou trĂȘs vezes uma declaração; chegou a entornar um ou dous olhares de amor, que nĂŁo pareceram de todo feios Ă pequena; e, porque ela sorriu, ele desconfiou e desesperou. "Qual!" pensava consigo o rapaz; "ela ama a outro com certeza."
Veio enfim o dia, o grande dia. O major deu um pequeno jantar, em que figurou LuĂs Bastinhos; de noite reuniu uma parte dos convidados, porque nem todos lĂĄ puderam ir, e fizeram bem; a casa nĂŁo dava para tanto. Ainda assim era muita a gente reunida, muita e brilhante, e alegre, como alegre parecia e deveras estava o major. NĂŁo se disse nem se dirĂĄ dos brindes do major, Ă mesa do jantar; nĂŁo podem inserir-se aqui todas as recordaçÔes clĂĄssicas do velho poeta de outros anos; seria nĂŁo acabar mais. A Ășnica cousa que verdadeiramente se pode dizer Ă© que o major declarou, Ă sobremesa, ser esse o dia mais venturoso de todos os seus longos anos, entre outros motivos, porque tinha gosto de ver ao pĂ© de si o jovem salvador da filha.
- Que idĂ©ia! - murmurou a filha; e deu um imperceptĂvel muxoxo.
LuĂs Bastinhos aproveitou o ensejo.
"MagnĂfico" disse ele consigo; "depois do cafĂ©, peço-lhe duas palavras em particular, e logo depois a filha."
Assim fez; tomado o café, pediu ao major uns cinco minutos de atenção. Caldas, um pouco vermelho de comoção e de champagne, declarou-lhe que até lhe daria cinco mil minutos, se tantos fossem precisos.
LuĂs Bastinhos sorriu lisonjeado a essa deslocada insinuação; e, entrando no gabinete particular do major, foi sem mais preĂąmbulo ao fim da entrevista; pediu-lhe a filha em casamento. O major quis resguardar um pouco a dignidade paterna; mas era impossĂvel. Sua alegria foi uma explosĂŁo.
- Minha filha! - bradou ele -; mas... minha filha... ora essa... pois nĂŁo!... Minha filha!
E abria os braços e apertava com eles o jovem candidato, que, um pouco admirado do prĂłprio atrevimento, chegou a perder o uso da voz. Mas a voz era, aliĂĄs, inĂștil, ao menos durante o primeiro quarto de hora, em que sĂł falou o ambiciado sogro, com uma volubilidade sem limites. Cansou enfim, mas de um modo cruel.
- Velhacos! - disse ele -; com que entĂŁo... amam-se Ă s escondidas...
- Eu?
- Pois quem?
- Peço-lhe perdĂŁo - disse LuĂs Bastinhos -; mas nĂŁo sei... nĂŁo tenho certeza...
- QuĂȘ! NĂŁo se correspondem?...
- NĂŁo me tenho atrevido...
O major abanou a cabeça com certo ar de irritação e låstima; pegou-lhe das mãos e fitou-o durante alguns segundos.
- Tu és afinal de contas um pandorga, sim, um pandorga - disse ele, largando-lhe as mãos.
Mas o gosto de os ver casados era tal, e tal a alegria daquele dia de anos, que o major sentiu a låstima converter-se em entusiasmo, a irritação, em gosto, e tudo acabou em boas promessas.
- Pois digo-te, que te hås de casar - concluiu ele -; Marcelina é um anjo, tu outro, eu outro; tudo indica que nos devemos ligar por laços mais doces do que as simples relaçÔes da vida. Juro-te que serås o pai de meus netos...
Jurava mal o major, porque daĂ a meia hora, quando ele chamou a filha ao gabinete, e lhe comunicou o pedido, recebeu desta a mais formal recusa; e porque insistisse em querer concedĂȘ-la ao rapaz, disse-lhe a moça que despediria o pretendente em plena sala, se lhe falassem mais em semelhante absurdo. Caldas, que conhecia a filha nĂŁo disse mais nada. Quando o pretendente lhe perguntou, daĂ a pouco, se devia considerar-se feliz, ele usou um expediente assaz enigmĂĄtico: piscou-lhe o olho. LuĂs Bastinhos ficou radiante; ergueu-se Ă s nuvens nas asas da felicidade.
Durou pouco a felicidade; Marcelina nĂŁo correspondia Ă s promessas do major. TrĂȘs ou quatro vezes chegara-se a ela LuĂs Bastinhos, com uma frase piegas na ponta da lĂngua, e vira-se obrigado a engoli-la outra vez, porque a recepção de Marcelina nĂŁo o animava a mais. Irritado, foi sentar-se ao canto de uma janela, com os olhos na lua, que estava esplĂȘndida - uma verdadeira nesga de romantismo. Ali fez mil projetos trĂĄgicos, o suicĂdio, o assassinato, o incĂȘndio, a revolução, a conflagração dos elementos; ali jurou que se vingaria de um modo exemplar. Como entĂŁo soprasse uma brisa fresca, e ele a recebesse em primeira mĂŁo, Ă janela, acalmaram-se-lhe as ideias fĂșnebres e sanguĂneas, e apenas lhe ficou um desejo de vingança de sala. Qual? NĂŁo sabia qual fosse; mas trouxe-lha enfim uma sobrinha do major.
- NĂŁo dança? - perguntou ela a LuĂs Bastinhos.
- Eu?
- O senhor.
- Pois nĂŁo, minha senhora.
Levantou-se e deu-lhe o braço.
- De maneira que - disse ela -, jå agora são as moças que tiram os homens para dançar?
- Oh! Não! - protestou ele -. As moças apenas ordenam aos homens o que devem fazer; e o homem que estå no seu papel obedece sem discrepar.
- Mesmo sem vontade? - perguntou a prima de Marcelina.
- Quem Ă© que neste mundo pode nĂŁo ter vontade de obedecer a uma dama? -disse LuĂs Bastinhos com o seu ar mais piegas.
Estava em pleno madrigal; iriam longe, porque a moça era das que saboreiam esse gĂȘnero de palestra. Entretanto, tinham dado o braço, e passeavam ao longo da sala, Ă espera da valsa que se ia tocar. Deu sinal a valsa, os pares saĂram, e começou o turbilhĂŁo.
NĂŁo tardou muito que a sobrinha do major compreendesse que estava abraçada a um valsista emĂ©rito, a um verdadeiro modelo de valsistas. Que delicadeza! Que segurança! Que acerto de passos! Ela, que tambĂ©m valsava com muita regularidade e graça, entregou-se toda ao parceiro. E ei-los unidos, a voltearem rapidamente, leves como duas plumas, sem perder um compasso, sem discrepar uma linha. Pouco a pouco, esvaziando-se a arena, iam sendo os dois objeto exclusivo da atenção de todos. NĂŁo tardou que ficassem sĂłs; e foi entĂŁo que o sucesso se formou decisivo e lisonjeiro. Eles giravam e sentiam que eram o alvo da admiração geral; e ao senti-lo, criavam forças novas, e nĂŁo cediam o campo a nenhum outro. Pararam com a mĂșsica.
- Quer tomar alguma cousa? - perguntou LuĂs Bastinhos com a mais adocicada de suas entonaçÔes.
A moça aceitou um pouco de ĂĄgua; e enquanto andavam elogiavam um ao outro, com o maior calor do mundo. Nenhum desses elogios, porĂ©m, chegou ao do major, quando daĂ a pouco encontrou LuĂs Bastinhos.
- Pois vocĂȘ estava com isso guardado! - disse ele.
- Isso quĂȘ?
- Isso... esse talento que Deus concedeu a poucos... a bem raros. Sim, senhor; pode crer que Ă© o rei da minha festa.
E apertou-lhe muito as mĂŁos, piscando o olho. LuĂs Bastinhos tinha jĂĄ perdido toda a fĂ© naquele jeito peculiar do major; recebeu-o com frieza. O sucesso entretanto fora grande; ele o sentiu nos olhares sorrateiros dos outros rapazes, nos gestos de desdĂ©m que eles faziam; foi a consagração Ășltima.
- Com que entĂŁo, sĂł minha prima Ă© que mereceu uma valsa!
LuĂs Bastinhos estremeceu, ao ouvir esta palavra; voltou-se; deu com os olhos em Marcelina. A moça repetiu o dito, batendo-lhe com o leque no braço. Ele murmurou algumas palavras, que a histĂłria nĂŁo conservou, aliĂĄs deviam ser notĂĄveis, porque ele ficou vermelho como uma pitanga. Essa cor ainda se tornou mais viva, quando a moça, enfiando-lhe o braço, disse resolutamente:
- Vamos a esta valsa...
Tremia o rapaz de comoção; pareceu-lhe ver nos olhos da moça todas as promessas da bem-aventurança; entrou a compreender os piscados do major.
- EntĂŁo? - disse Marcelina.
- Vamos.
- Ou estĂĄ cansado?
- Eu? Que ideia! NĂŁo, nĂŁo, nĂŁo estou cansado.
A outra valsa fora um primor; esta foi classificada entre os milagres. Os amadores confessaram francamente que nunca tinham visto um valsador como LuĂs Bastinhos. Era o impossĂvel realizado; seria a pura arte dos arcanjos, se os arcanjos valsassem. Os mais invejosos tiveram de ceder alguma cousa Ă opiniĂŁo da sala. O major chegou Ă s raias do delĂrio.
- Que me dizem a este rapaz? - bradou ele a uma roda de senhoras -. Ele faz tudo: nada como um peixe e valsa como um piĂŁo. Salvou-me a filha para valsar com ela.
Marcelina nĂŁo ouviu estas palavras do pai, ou perdoou-lhas. Estava toda entregue Ă admiração. LuĂs Bastinhos era atĂ© ali o melhor valsista que encontrara. Ela tinha vaidade e reputação de valsar bem; e achar um parceiro de tal força era a maior fortuna que podia acontecer a uma valsista. Disse-lho ela mesma, nĂŁo sei se com a boca, se com os olhos, e ele repetiu-lhe a mesma ideia, e foram ratificar daĂ a pouco as suas impressĂ”es numa segunda valsa. Foi outro e maior sucesso.
Parece que Marcelina valsou ainda uma vez com LuĂs Bastinhos, mas em sonhos, uma valsa interminĂĄvel, numa planĂcie, ao som de uma orquestra de diabos azuis e invisĂveis. Foi assim que ela referiu o sonho, no dia seguinte, ao pai.
- JĂĄ sei - disse este -; esses diabos azuis e invisĂveis deviam ser dois.
- Dois?
- Um padre e um sacristĂŁo...
- Ora, papai!
E foi um protesto tĂŁo gracioso, que o LuĂs Bastinhos, se o ouvisse e visse, mui provavelmente pediria repetição. Mas nem viu nem soube dele. De noite, indo lĂĄ, recebeu novos louvores, falaram do baile da vĂ©spera. O major confessou que era o melhor baile do ano; e dizendo-lhe a mesma cousa o LuĂs Bastinhos, declarou o major que o salvador da filha reunia o bom gosto ao talento coreogrĂĄfico.
- Mas por que nĂŁo dĂĄ outra brincadeira, um pouco mais familiar? - disse o LuĂs Bastinhos.
O major piscou o olho e adotou a ideia. Marcelina exigiu de LuĂs Bastinhos que dançasse com ela a primeira valsa.
- Todas - disse ele.
- Todas?
- Juro-lhe que todas.
Marcelina abaixou os olhos e lembrou-se dos diabos azuis e invisĂveis. Veio a noite da "brincadeira", e LuĂs Bastinhos cumpriu a promessa; valsaram ambos todas as valsas. Era quase um escĂąndalo. A convicção geral Ă© que o casamento estava prĂłximo.
Alguns dias depois, o major deu com os dois numa sala, ao pé de uma mesa, a folhearem um livro - um livro ou as mãos, porque as mãos de um e de outro estavam sobre o livro, juntas, e apertadas. Parece que também folheavam os olhos, com tanta atenção que não viram o major. O major quis sair, mas preferiu precipitar a situação.
- EntĂŁo, que Ă© isso? EstĂŁo valsando sem mĂșsica?
Estremeceram os dois e coraram muito, mas o major piscou o olho, e saiu. LuĂs Bastinhos aproveitou a circunstĂąncia para dizer Ă moça que o casamento era a verdadeira valsa social; ideia que ela aprovou e comunicou ao pai.
- Sim - disse este -, a melhor TerpsĂcore Ă© Himeneu.
Celebrou-se o casamento daĂ a dois meses. O Pimentel, que serviu de padrinho ao noivo, disse-lhe na igreja que em certos casos era melhor valsar que nadar, e que a verdadeira chave do coração de Marcelina nĂŁo era a gratidĂŁo mas a coreografia. LuĂs Bastinhos abanou a cabeça sorrindo; o major, supondo que eles o elogiavam em voz baixa, piscou o olho.