Capítulo 1
I
Meu avô foi o padre Rufino da Conceição, licenciado em theologia, author
de uma devota Vida de Santa Philomena, e prior da Amendoeirinha. Meu
pai, afilhado de Nossa Senhora da Assumpção, chamava-se Rufino da
Assumpção Raposo--e vivia em Evora com a minha avó, Philomena Raposo,
por alcunha a «Repolhuda,» doceira na rua do Lagar dos Dizimos. O papá
tinha um emprego no correio, e escrevia por gosto no Pharol do
Alemtejo.
Em 1853, um ecclesiastico illustre, D. Gaspar de Lorena, bispo de
Chorazin (que é em Galilêa), veio passae o S. João a Evora, a casa do
conego Pitta, onde o papá muitas vezes á noite costumava ir tocar
violão. Por cortezia com os dois sacerdotes, o papá publicou no Pharol
uma chronica, laboriosamente respigada no Peculio de Prégadores,
felicitando Evora «pela dita d'abrigar em seus muros o insigne prelado
D. Gaspar, lume fulgente da Igreja, e preclarissima torre de santidade.»
O bispo de Chorazin recortou este pedaço do Pharol para o metter entre
as folhas do seu Breviario; e tudo no papá lhe começou a agradar, até o
aceio da sua roupa branca, até a graça chorosa com que elle cantava,
acompanhando-se no violão, a xacara do conde Ordonho. Mas quando soube
que este Rufino da Assumpção, tão moreno e sympathico, era o afilhado
carnal do seu velho Rufino da Conceição, camarada de estudos no bom
Seminario de S. José e nas veredas theologicas da Universidade, a sua
affeição pelo papá tornou-se extremosa. Antes de partir de Evora deu-lhe
um relogio de prata; e, por influencia d'elle, o papá, depois de
arrastar alguns mezes a sua madraçaria pela alfandega do Porto, como
aspirante, foi nomeado, escandalosamente, director da alfandega de
Vianna.
As macieiras cobriam-se de flôr quando o papá chegou ás veigas suaves
d'Entre-Minho-e-Lima; e logo n'esse julho conheceu um cavalheiro de
Lisboa, o commendador G. Godinho, que estava passando o verão com duas
sobrinhas, junto ao rio, n'uma quinta chamada o Mosteiro, antigo solar
dos condes de Lindoso. A mais velha d'estas senhoras, D. Maria do
Patrocinio, usava oculos escuros, e vinha todas as manhãs da quinta á
cidade, n'um burrinho, com o criado de farda, ouvir missa a Sant'Anna. A
outra, D. Rosa, gordinha e trigueira, tocava harpa, sabia de cór os
versos do Amor e Melancolia, e passava horas, á beira da agua, entre a
sombra dos amieiros, rojando o vestido branco pelas relvas, a fazer
raminhos silvestres.
O papá começou a frequentar o Mosteiro. Um guarda da alfandega
levava-lhe o violão; e emquanto o commendador e outro amigo da casa, o
Margaride, doutor delegado, se embebiam n'uma partida de gamão, e D.
Maria do Patrocinio rezava em cima o terço--o papá, na varanda, ao lado
de D. Rosa, defronte da lua, redonda e branca sobre o rio, fazia gemer
no silencio os bordões e dizia as tristezas do conde Ordonho. Outras
vezes jogava elle a partida de gamão: D. Rosa, sentava-se então ao pé do
titi, com uma flôr nos cabellos, um livro cahido no regaço; e o papá,
chocalhando os dados, sentia a caricia promettedora dos seus olhos
pestanudos.
Casaram. Eu nasci n'uma tarde de sexta-feira de Paixão; e a mamã morreu,
ao estalarem, na manhã alegre, os foguetes da Alleluia. Jaz, coberta de
goivos, no cemiterio de Vianna, n'uma rua junto ao muro, humida da
sombra dos chorões, onde ella gostava de ir passear nas tardes de verão,
vestida de branco, com a sua cadellinha felpuda que se chamava
Traviata.
O commendador e D. Maria não voltaram ao Mosteiro. Eu cresci, tive o
sarampo; o papá engordava; e o seu violão dormia, esquecido ao canto da
sala, dentro d'um sacco de baeta verde. N'um julho de grande calor, a
minha criada Gervasia vestiu-me o fato pesado de velludilho preto; o
papá poz um fumo no chapéo de palha; era o luto do commendador G.
Godinho a quem o papá muitas vezes chamava, por entre dentes,
«malandro.»
Depois, n'uma noite de entrudo, o papá morreu de repente, com uma
apoplexia, ao descer a escadaria de pedra da nossa casa, mascarado
d'urso, para ir ao baile das senhoras Macedos.
Eu fazia então sete annos; e lembro-me de ter visto, ao outro dia, no
nosso pateo, uma senhora alta e gorda, com uma mantilha rica de renda
negra, a soluçar diante das manchas de sangue do papá, que ninguem
lavára, e já tinham seccado nas lages. Á porta uma velha esperava,
rezando, encolhida no seu mantéo de baetilha.
As janellas da frente da casa foram fechadas; no corredor escuro, sobre
um banco, um candieiro de latão ficou dando a sua luzinha de capella,
fumarenta e mortal. Ventava e chovia. Pela vidraça da cozinha, emquanto
a Marianna, choramigando, abanava o fogareiro, eu vi passar no largo da
Senhora da Agonia, o homem que trazia ás costas o caixão do papá. No
alto frio do monte a capellinha da Senhora, com a sua cruz negra,
parecia mais triste ainda, branca e nua, entre os pinheiros, quasi a
sumir-se na nevoa; e adiante, onde estão as rochas, gemia e rolava, sem
descontinuar, um grande mar d'inverno.
Á noite, no quarto de engommar, a minha criada Gervasia sentou-me no
chão, embrulhado n'um saiote. De quando em quando, rangiam no corredor
as botas do João, guarda da alfandega, que andava a defumar com
alfazema. A cozinheira trouxe-me uma fatia de pão de ló. Adormeci: e
logo achei-me a caminhar á beira d'um rio claro, onde os choupos, já
muito velhos, pareciam, ter uma alma e suspiravam; e ao meu lado ia
andando um homem nú, com duas chagas nos pés, e duas chagas nas mãos,
que era Jesus, Nosso Senhor.
Passados dias, acordaram-me, n'uma madrugada em que a janella do meu
quarto, batida do sol, resplandecia prodigiosamente como um prenuncio de
coisa santa. Ao lado da cama, um sujeito risonho e gordo fazia-me
cocegas nos pés com ternura e chamava-me bréjeirote. A Gervasia
disse-me que era o snr. Mathias, que me ia levar para muito longe, para
casa da tia Patrocinio: e o snr. Mathias, com a sua pitada suspensa,
olhava espantado para as meias rôtas que me calçára a Gervasia.
Embrulharam-me no chale-manta cinzento do papá; o João, guarda da
alfandega, trouxe-me ao collo até á porta da rua, onde estava uma
liteira com cortinas d'oleado.
Começámos então a caminhar por compridas estradas. Mesmo adormecido, eu
sentia as lentas campainhas dos machos: e o snr. Mathias, defronte de
mim, fazia-me de vez em quando uma festinha na cara, e dizia: «Ora cá
vamos.» Uma tarde, ao escurecer, parámos de repente n'um sitio ermo,
onde havia um lamaçal; o liteireiro, furioso, praguejava, sacudindo o
archote acceso. Em redor, dolente e negro, rumorejava um pinheiral. O
snr. Mathias, enfiado, tirou o relogio da algibeira e escondeu-o no cano
da bota.
Uma noite, atravessámos uma cidade onde os candieiros da rua tinham uma
luz jovial, rara e brilhante como eu nunca vira, da fórma d'uma tulipa
aberta. Na estalagem em que apeámos, o criado, chamado Gonçalves,
conhecia o snr. Mathias: e depois de nos trazer os bifes, ficou
familiarmente encostado á mesa, de guardanapo ao hombro, contando coisas
do snr. barão, e da ingleza do snr. barão. Quando recolhiamos ao quarto,
alumiados pelo Gonçalves, passou por nós, bruscamente, no corredor, uma
senhora, grande e branca, com um rumor forte de sêdas claras, espalhando
um aroma d'almiscar. Era a ingleza do snr. barão. No meu leito de ferro,
desperto pelo barulho das seges, eu pensava n'ella, rezando Ave-Marias.
Nunca roçára corpo tão bello, d'um perfume tão penetrante: ella era
cheia de graça, o Senhor estava com ella, e passava, bemdita entre as
mulheres, com um rumor de sêdas claras...
Depois, partimos n'um grande coche que tinha as armas do rei, e rolava a
direito por uma estrada lisa, ao trote forte e pesado de quatro cavallos
gordos. O snr. Mathias, de chinelas nos pés e tomando a sua pitada,
dizia-me, aqui e além, o nome d'uma povoação aninhada em torno d'uma
velha igreja, na frescura d'um valle. Ao entardecer, por vezes, n'uma
encosta, as janellas d'uma calma vivenda faiscavam com um fulgor d'ouro
novo. O coche passava; a casa ficava adormecendo entre as arvores;
através dos vidros embaciados eu via luzir a estrella de Venus. Alta
noite tocava uma corneta; e entravamos, atroando as calçadas, n'uma
villa adormecida. Defronte do portão da estalagem moviam-se
silenciosamente lanternas mortiças. Em cima, n'uma sala aconchegada, com
a mesa cheia de talheres, fumegavam as terrinas; os passageiros,
arripiados, bocejavam, tirando as luvas grossas de lã; e eu comia o meu
caldo de gallinha, estremunhado e sem vontade, ao lado do snr. Mathias,
que conhecia sempre algum moço, perguntava pelo doutor delegado, ou
queria saber como iam as obras da camara.
Emfim, n'um domingo de manhã, estando a choviscar, chegámos a um
casarão, n'um largo cheio de lama. O snr. Mathias disse-me que era
Lisboa; e, abafando-me no meu chale-manta, sentou-me n'um banco, ao
fundo d'uma sala humida, onde havia bagagens e grandes balanças de
ferro. Um sino lento tocava á missa; diante da porta passou uma
companhia de soldados, com as armas sob as capas d'oleado. Um homem
carregou os nossos bahús, entrámos n'uma sege, eu adormeci sobre o
hombro do snr. Mathias. Quando elle me poz no chão, estavamos n'um pateo
triste, lageado de pedrinha miuda, com assentos pintados de preto: e na
escada uma moça gorda cochichava com um homem d'opa escarlate, que
trazia ao collo o mealheiro das Almas.
Era a Vicencia, a criada da tia Patrocinio. O snr. Mathias subiu os
degraus conversando com ella, e levando-me ternamente pela mão. N'uma
sala forrada de papel escuro, encontrámos uma senhora muito alta, muito
secca, vestida de preto, com um grilhão d'ouro no peito; um lenço rôxo,
amarrado no queixo, cahia-lhe n'um bioco lugubre sobre a testa; e no
fundo d'essa sombra negrejavam dois oculos defumados. Por traz d'ella,
na parede, uma imagem de Nossa Senhora das Dôres olhava para mim, com o
peito trespassado d'espadas.
--Esta é a titi, disse-me o snr. Mathias. É necessario gostar muito da
titi... É necessario dizer sempre que sim á titi!
Lentamente, a custo, ella baixou o carão chupado e esverdinhado. Eu
senti um beijo vago, d'uma frialdade de pedra: e logo a titi recuou,
enojada.
--Credo, Vicencia! Que horror! Acho que lhe puzeram azeite no cabello!
Assustado, com o beicinho já a tremer, ergui os olhos para ella,
murmurei:
--Sim, titi.
Então o snr. Mathias gabou o meu genio, o meu proposito na liteira, a
limpeza com que eu comia a minha sopa á mesa das estalagens.
--Está bem, rosnou a titi seccamente. Era o que faltava, portar-se mal,
sabendo o que eu faço por elle... Vá, Vicencia, leve-o lá para dentro...
Lave-lhe essa ramella, veja se elle sabe fazer o signal da cruz...
O snr. Mathias deu-me dois beijos repenicados. A Vicencia levou-me para
a cozinha.
Á noite vestiram-me o meu fato de velludilho; e a Vicencia, séria,
d'avental lavado, trouxe-me pela mão a uma sala em que pendiam cortinas
de damasco escarlate, e os pés das mesas eram dourados como as columnas
d'um altar. A titi estava sentada no meio do canapé, vestida de sêda
preta, toucada de rendas pretas, com os dedos resplandecentes de anneis.
Ao lado, em cadeiras tambem douradas, conversavam dois ecclesiasticos.
Um, risonho e nedio, de cabellinho encaracolado e já branco, abriu os
braços para mim, paternalmente. O outro, moreno e triste, rosnou só
«boas noites.» E da mesa, onde folheava um grande livro de estampas, um
homemzinho, de cara rapada e collarinhos enormes, comprimentou,
atarantado, deixando escorregar a luneta do nariz.
Cada um d'elles vagarosamente me deu um beijo. O padre triste
perguntou-me o meu nome, que eu pronunciava Tedrico. O outro,
amoravel, mostrando os dentes frescos, aconselhou-me que separasse as
syllabas e dissesse The-o-do-ri-co. Depois acharam-me parecido com a
mamã, nos olhos. A titi suspirou, deu louvores a Nosso Senhor de que eu
não tinha nada do Raposo. E o sujeito de grandes collarinhos fechou o
livro, fechou a luneta, e timidamente quiz saber se eu trazia saudades
de Vianna. Eu murmurei, atordoado:
--Sim, titi.
Então o padre mais idoso e nedio chegou-me para os joelhos,
recommendou-me que fosse temente a Deus, quietinho em casa, sempre
obediente á titi...
--O Theodorico não tem ninguem senão a titi... É necessario dizer sempre
que sim á titi...
Eu repeti, encolhido:
--Sim, titi.
A titi, severamente, mandou-me tirar o dedo da bocca. Depois disse-me
que voltasse para a cozinha, para a Vicencia, sempre a seguir pelo
corredor...
--E quando passar pelo oratorio, onde está a luz e a cortina verde,
ajoelhe, faça o seu signalzinho da cruz...
Não fiz o signal da cruz. Mas entreabri a cortina; e o oratorio da titi
deslumbrou-me, prodigiosamente. Era todo revestido de sêda rôxa, com
paineis enternecedores em caixilhos floridos, contando os trabalhos do
Senhor; as rendas da toalha do altar roçavam o chão tapetado; os santos
de marfim e de madeira, com aureolas lustrosas, viviam n'um bosque de
violetas e de camelias vermelhas. A luz das velas de cera fazia brilhar
duas salvas nobres de prata, encostadas á parede, em repouso, como
broqueis de santidade; e erguido na sua cruz de pau preto, sob um docel,
Nosso Senhor Jesus Christo era todo d'ouro, e reluzia.
Cheguei-me devagar até junto da almofada de velludo verde, pousada
diante do altar, cavada pelos piedosos joelhos da titi. Ergui para Jesus
crucificado os meus lindos olhos negros. E fiquei pensando que no céo os
anjos, os santos, Nossa Senhora e o Pai de todos, deviam ser assim, de
ouro, cravejados talvez de pedras: o seu brilho formava a luz do dia; e
as estrellas eram os pontos mais vivos do metal precioso, transparecendo
através dos véos negros, em que os embrulhava á noite, para dormirem, o
carinho beato dos homens.
Depois do chá, a Vicencia foi-me deitar n'uma alcovinha pegada ao seu
quarto. Fez-me ajoelhar em camisa, juntou-me as mãos, ergueu-me a face
para o céo. E dictou os Padre-Nossos que me cumpria rezar pela saude da
titi, pelo repouso da mamã, e por alma d'um commendador que fôra muito
bom, muito santo, e muito rico, e que se chamava Godinho.
* * * * *
Apenas completei nove annos, a titi mandou-me fazer camisas, um fato de
pano preto, e collocou-me, como interno, no collegio dos Isidoros, então
em Santa Isabel.
Logo nas primeiras semanas liguei-me ternamente com um rapaz Chrispim,
mais crescido que eu, filho da firma Telles, Chrispim & C.^a, donos da
fabrica do fiação á Pampulha. O Chrispim ajudava á missa aos domingos;
e, de joelhos, com os seus cabellos compridos e louros, lembrava a
suavidade d'um anjo. Ás vezes agarrava-me no corredor e marcava-me a
face, que eu tinha feminina e macia, com beijos devoradores; á noite, na
sala, d'estudo, á mesa onde folheavamos os somnolentos diccionarios,
passava-me bilhetinhos a lapis, chamando-me seu idolatrado o
promettendo-me caixinhas de pennas d'aço...
Á quinta-feira era o desagradavel dia de lavarmos os pés. E tres vezes
por semana o sebento padre Soares, vinha, de palito na bocca,
interrogar-nos em doutrina e contar-nos a vida do Senhor.
--Ora depois pegaram, e levaram-no de rastos a casa de Caiphás... Olá, o
da pontinha do banco, quem era Caiphás?... Emende! Emende adiante!...
Tambem não! Irra, cabeçudos! Era um judeu o dos peores... Ora diz que,
lá n'um sitio muito feio da Judêa, ha uma arvore toda d'espinhos, que é
mesmo d'arripiar...
A sineta do recreio tocava; todos, a um tempo e d'estalo, fechavamos a
cartilha.
O tristonho pateo de recreio, areado com saibro, cheirava mal por causa
da visinhança das latrinas; e o regalo para os mais crescidos era tirar
uma fumaça do cigarro, ás escondidas, n'uma sala terrea onde aos
domingos o mestre de dansa, o velho Cavinetti, frisado e de sapatinhos
decotados, nos ensinava mazurkas.
Cada mez a Vicencia, de capote e lenço, me vinha buscar depois da missa,
para ir passar um domingo com a titi. Isidoro Junior, antes de eu sair,
examinava-me sempre os ouvidos e as unhas; muitas vezes, mesmo na bacia
d'elle, dava-me uma ensaboadella furiosa, chamando-me baixo sebento.
Depois trazia-me até á porta, fazia-me uma caricia, tratava-me de seu
querido amiguinho, e mandava pela Vicencia os seus respeitos á snr.^a
D. Patrocinio das Neves.
Nós moravamos no Campo de Sant'Anna. Ao descer o Chiado, eu parava n'uma
loja de estampas, diante do languido quadro d'uma mulher loura, com os
peitos nús, recostada n'uma pelle de tigre, e sustentando na ponta dos
dedos, mais finos que os do Chrispim, um pesado fio de perolas. A
claridade d'aquella nudez fazia-me pensar na ingleza do snr. barão: e
esse aroma, que tanto me perturbára no corredor da estalagem,
respirava-o outra vez, finamente espalhado, na rua cheia de sol, pelas
sêdas das senhoras que subiam para a missa do Loreto, espartilhadas e
graves.
A titi, em casa, estendia-me a mão a beijar: e toda a manhã eu ficava
folheando volumes do Panorama Universal, na saleta d'ella, onde havia
um sofá de riscadinho, um armario rico de pau preto, e lithographias
coloridas, com ternas passagens da vida purissima do seu favorito santo,
o patriarcha S. José. A titi, de lenço rôxo carregado para a testa,
sentada á janella por dentro dos vidros, com os pés embrulhados n'uma
manta, examinava solicitamente um grande caderno de contas.
Ás tres horas enrolava o caderno; e de dentro da sombra do lenço
começava a perguntar-me doutrina. Dizendo o Credo, desfiando os
Mandamentos, com os olhos baixos, eu sentia o seu cheiro acre e
adocicado a rapé e a formiga.
Aos domingos vinham jantar comnosco os dois ecclesiasticos. O de
cabellinho encaracolado era o padre Casimiro, procurador da titi:
dava-me abraços risonhos; convidava-me a declinar arbor arboris, currus
curri; proclamava-me com affecto «talentaço.» E o outro ecclesiastico
elogiava o collegio dos Isidoros, formosissimo estabelecimento de
educação, como não havia nem na Belgica. Esse chamava-se padre Pinheiro.
Cada vez me parecia mais moreno, mais triste. Sempre que passava por
diante d'um espelho, deitava a lingua de fóra, e alli se esquecia a
estical-a, a estudal-a, desconfiado e aterrado.
Ao jantar o padre Casimiro gostava de vêr o meu appetite.
--Vai mais um bocadinho da vitellinha guisada? Rapazes querem-se alegres
e bem comidos!...
E padre Pinheiro, palpando o estomago:
--Felizes idades! Felizes idades em que se repete a vitella!
Elle e a titi fallavam então de doenças. Padre Casimiro, córadinho, com
o guardanapo atado ao pescoço, o prato cheio, o copo cheio, sorria
beatificamente.
Quando, na praça, entre as arvores, começavam a luzir os candieiros de
gaz, a Vicencia punha o seu chale velho de xadrez e ia levar-me ao
collegio. A essa hora, nos domingos, chegava o sujeitinho de cara rapada
e vastos collarinhos, que era o snr. José Justino, secretario da
confraria de S. José, e tabellião da titi, com cartorio a S. Paulo. No
pateo, tirando já o seu paletot, fazia-me uma festa no queixo, e
perguntava á Vicencia pela saude da snr.^a D. Patrocinio. Subia; nós
fechavamos o pesado portão. E eu respirava consoladamente--porque me
entristecia aquelle casarão com os seus damascos vermelhos, os santos
innumeraveis, e o cheirinho a capella.
Pelo caminho a Vicencia fallava-me da titi, que a trouxera, havia seis
annos, da Misericordia. Assim eu fui sabendo que ella padecia do figado;
tinha sempre muito dinheiro em ouro n'uma bolsa de sêda verde; e o
commendador Godinho, tio d'ella e da minha mamã, deixára-lhe duzentos
contos em predios, em papeis, e a quinta do Mosteiro ao pé de Vianna,
e pratas e louças da India... Que rica que era a titi! Era necessario
ser bom, agradar sempre á titi!
Á porta do collegio a Vicencia dizia «Adeus, amorzinho,» e dava-me um
grande beijo. Muitas vezes, de noite, abraçado ao travesseiro, eu
pensava na Vicencia, e nos braços que lhe vira arregaçados, gordos e
brancos como leite. E assim, foi nascendo no meu coração, pudicamente,
uma paixão pela Vicencia.
Um dia, um rapaz já de buço chamou-me no recreio lambisgoia.
Desafiei-o para as latrinas, ensanguentei-lhe lá a face toda, com um
murro bestial. Fui temido. Fumei cigarros. O Chrispim sahira dos
Isidoros; eu ambicionava saber jogar a espada. E o meu alto amor pela
Vicencia desappareceu um dia, insensivelmente, como uma flôr que se
perde na rua.
E os annos assim foram passando: pelas vesperas de Natal accendia-se um
brazeiro no refeitorio, eu envergava o meu casacão forrado de baeta e
ornado d'uma gola d'astrakan; depois chegavam as andorinhas aos beiraes
do nosso telhado, e no oratorio da titi, em lugar de camelias, vinham
braçadas dos primeiros cravos vermelhos perfumar os pés d'ouro de Jesus;
depois era o tempo dos banhos de mar, e o padre Casimiro mandava á titi
um gigo d'uvas da sua quinta de Torres... Eu comecei a estudar
rhetorica.
* * * * *
Um dia o nosso bom procurador disse-me que eu não voltaria mais para os
Isidoros, indo acabar os meus preparatorios em Coimbra, na casa do dr.
Rôxo, lente de Theologia. Fizeram-me roupa branca. A titi deu-me n'um
papel a oração que eu diariamente devia rezar a S. Luiz Gonzaga,
padroeiro da mocidade estudiosa, para que elle conservasse em meu corpo
a frescura da castidade, e na minha alma o medo do Senhor. O padre
Casimiro foi-me levar á cidade graciosa onde dormita Minerva.
Detestei logo o dr. Rôxo. Em sua casa soffri vida dura e claustral; e
foi um ineffavel gosto quando, no meu primeiro anno de Direito, o
desagradavel ecclesiastico morreu miseravelmente d'um anthraz. Passei
então para a divertida hospedagem das Pimentas--e conheci logo, sem
moderação, todas as independencias, e as fortes delicias da vida. Nunca
mais rosnei a delambida oração a S. Luiz Gonzaga, nem dobrei o meu
joelho viril diante de imagem benta que usasse aureola na nuca;
embebedei-me com alarido nas Camellas; affirmei a minha robustez
esmurrando sanguinolentamente um marcador do Trony; fartei a carne com
saborosos amores no Terreiro da Herva; vadiei ao luar, ganindo fados;
usava moca; e como a barba me vinha, basta e negra, aceitei com orgulho
a alcunha de Raposão. Todos os quinze dias porém escrevia á titi, na
minha boa letra, uma carta humilde e piedosa, onde lhe contava a
severidade dos meus estudos, o recato dos meus habitos, as copiosas
rezas e os rigidos jejuns, os sermões de que me nutria, os dôces
desaggravos ao Coração de Jesus á tarde, na Sé, e as novenas com que
consolava a minha alma em Santa-Cruz no remanso dos dias feriados...
Os mezes de verão em Lisboa eram depois dolorosos. Não podia sahir,
mesmo a espontar o cabello, sem implorar da titi uma licença servil. Não
ousava fumar ao café. Devia recolher virginalmente á noitinha: e antes
de me deitar tinha de rezar com a velha um longo terço no oratorio. Eu
proprio me condemnára a esta detestavel devoção!
--Tu lá nos estudos costumas fazer o teu terço? perguntára-me, com
seccura, a titi.
E eu, sorrindo abjectamente:
--Ora essa! É que nem posso adormecer sem ter rezado o meu rico
terço!...
Aos domingos continuavam as partidas. O padre Pinheiro, mais triste,
queixava-se agora do coração, e um pouco tambem da bexiga. E havia outro
commensal, velho amigo do commendador Godinho, fiel visita das Neves, o
Margaride, o que fôra delegado em Vianna, depois juiz em Mangualde. Rico
por morte de seu mano Abel, secretario da Camara Patriarchal, o doutor
aposentára-se, farto dos autos, e vivia em ocio, lendo os periodicos,
n'um predio seu na Praça da Figueira. Como conhecêra o papá, e muitas
vezes o acompanhará ao Mosteiro, tratou-me logo com authoridade e por
você.
Era um homem corpulento e solemne, já calvo, com um carão livido, onde
destacavam as sobrancelhas cerradas, densas e negras como carvão. Raras
vezes penetrava na sala da titi sem atirar, logo da porta, uma noticia
pavorosa. «Então, não sabem? Um incendio medonho, na Baixa!» Apenas uma
fumaraça n'uma chaminé. Mas o bom Margaride, em novo, n'um sombrio
accesso d'imaginação, compuzera duas tragedias; e d'ahi lhe ficára este
gosto morbido d'exagerar e d'impressionar. «Ninguem como eu, dizia elle,
saborêa o grandioso...»
E, sempre que aterrava a titi e os sacerdotes, sorvia gravemente uma
pitada.
Eu gostava do dr. Margaride. Camarada do papá em Vianna, muitas vezes
lhe ouvira cantar, ao violão, a xacara do conde Ordonho. Tardes inteiras
vagueára com elle poeticamente, pela beira da agua, no Mosteiro,
quando a mamã fazia raminhos silvestres á sombra dos amieiros. E
mandou-me as amendoas mal eu nasci, á noitinha, em sexta-feira de
Paixão. Além d'isso, mesmo na minha presença, elle gabava francamente á
titi o meu intellecto, e a circumspecção dos meus modos.
--O nosso Theodorico, D. Patrocinio, é moço para deleitar uma tia... V.
exc.^a, minha rica senhora, tem aqui um Telemaco!
Eu córava, modesto.
Ora foi justamente passeando com elle no Rocio, n'um dia d'agosto, que
eu conheci um parente nosso, afastado, primo do commendador G. Godinho.
O dr. Margaride apresentou-m'o, dizendo apenas:--«o Xavier, teu primo,
moço de grandes dotes.» Era um homem enxovalhado, de bigode louro, que
fôra galante e desbaratára furiosamente trinta contos, herdados de seu
pai, dono d'uma cordoaria em Alcantara. O commendador G. Godinho, mezes
antes de morrer da sua pneumonia, tinha-o recolhido por caridade á
secretaria da Justiça, com vinte mil reis por mez. E o Xavier agora
vivia com uma hespanhola chamada Carmen, e tres filhos d'ella, n'um
casebre da rua da Fé.
Eu fui lá n'um domingo. Quasi não havia moveis; a bacia da cara, a
unica, estava entalada no fundo rôto da palhinha d'uma cadeira. O Xavier
toda a manhã deitára escarros de sangue pela bocca. E a Carmen,
despenteada, em chinelas, arrastando uma bata de fustão manchada de
vinho, embalava sorumbaticamente pelo quarto uma criança embrulhada n'um
trapo e com a cabecinha coberta de feridas.
Immediatamente o Xavier, tratando-me por tu, fallou-me da tia
Patrocinio... Era a sua esperança, n'aquella sombria miseria, a tia
Patrocinio! Serva de Jesus, proprietaria de tantos predios, ella não
podia deixar um parente, um Godinho, definhar-se alli n'aquelle casebre,
sem lençoes, sem tabaco, com os filhos em redor, esfarrapados, a chorar
por pão. Que custava á tia Patrocinio estabelecer-lhe, como já fizera o
Estado, uma mesadinha de vinte mil reis?
--Tu é que lhe devias fallar, Theodorico! Tu é que lhe devias dizer...
Olha essas crianças. Nem meias teem... Anda cá, Rodrigo, dize aqui ao
tio Theodorico. Que comeste hoje ao almoço?... Um bocado de pão
d'hontem! E sem manteiga, sem mais nada! E aqui está a nossa vida,
Theodorico! Olha que é duro, menino!
Enternecido, prometti fallar á titi.
Fallar á titi! Eu nem ousaria contar á titi que conhecia o Xavier, e que
entrava n'esse casebre impuro onde havia uma hespanhola, emmagrecida no
peccado.
E para que elles não percebessem o meu ignobil terror da titi, não
voltei á rua da Fé.
No meado de setembro, no dia da Natividade de Nossa Senhora, soube pelo
dr. Barroso que o primo Xavier, quasi a morrer, me queria fallar em
segredo.
Fui lá, de tarde, contrariado. Na escada cheirava a febre. A Concha, na
cozinha, conversava por entre soluços com outra hespanhola, magrita, de
mantilha preta e corpetesinho triste de setim côr de cereja. Os
pequenos, no chão, rapavam um tacho d'açorda. E na alcova o Xavier,
enrodilhado n'um cobertor, com a bacia da cara ao lado, cheia de
escarros de sangue, tossia, despedaçadamente:
--És tu, rapaz?
--Então que é isso, Xavier?
Elle exprimiu, n'um termo obsceno, que estava perdido. E estirando-se de
costas, com um brilho secco nos olhos, fallou-me logo da titi.
Escrevera-lhe uma carta linda, de rachar o coração: a fera não
respondera. E, agora, ia mandar para o Jornal de Noticias um annuncio,
a pedir uma esmola, assignando «Xavier Godinho, primo do rico
commendador G. Godinho.» Queria vêr se D. Patrocinio das Neves deixaria
um parente, um Godinho, mendigar assim, publicamente, na pagina d'um
jornal.
--Mas é necessario que tu me ajudes, rapaz, que a enterneças! Quando
ella lêr o annuncio, conta-lhe esta miseria! Desperta-lhe o brio.
Dize-lhe que é uma vergonha vêr morrer ao abandono um parente, um
Godinho. Dize-lhe que já se rosna! Olha, se hoje pude tomar um caldo, é
que essa rapariga, a Lolita, que está em casa da Benta Bexigosa, nos
trouxe ahi quatro corôas... Vê tu a que eu cheguei!
Ergui-me, commovido.
--Conta commigo, Xavier.
--Olha, se tens ahi cinco tostões que te não façam falta, dá-os á
Concha.
Dei-lh'os a elle: e sahi, jurando-lhe que ia fallar á titi,
solemnemente, em nome dos Godinhos e em nome de Jesus!
Depois do almoço, ao outro dia, a titi, de palito na bocca, e vagarosa,
desdobrou o Jornal de Noticias. E decerto achou logo o annuncio do
Xavier, porque ficou longo tempo fitando o canto da terceira pagina onde
elle negrejava, afflictivo, vergonhoso, medonho.
Então pareceu-me vêr, voltados para mim, lá do fundo nú do casebre, os
olhos afflictos do Xavier; a face amarella da Concha, lavada de
lagrimas; as pobres mãosinhas dos pequenos, magras, á espera da côdea de
pão... E todos aquelles desgraçados anciavam pelas palavras que eu ia
lançar á titi, fortes, tocantes, que os deviam salvar, e dar-lhes o
primeiro pedaço de carne d'aquelle verão de miseria. Abri os labios. Mas
já a titi, recostando-se na cadeira, rosnava com um sorrisinho feroz:
--Que se aguente... É o que succede a quem não tem temor de Deus e se
mette com bebedas... Não tivesse comido tudo em relaxações... Cá para
mim, homem perdido com saias, homem que anda atraz de saias, acabou...
Não tem o perdão de Deus, nem tem o meu! Que padeça, que padeça, que
tambem Nosso Senhor Jesus Christo padeceu!
Baixei a cabeça, murmurei:
--E ainda nós não padecemos bastante... Tem a titi razão. Que se não
mettesse com saias!
Ella ergueu-se, deu as graças ao Senhor. Eu fui para o meu quarto,
fechei-me lá, a tremer, sentindo ainda regeladas e ameaçadoras, as
palavras da titi, para quem os homens «acabavam quando se mettiam com
saias.» Tambem eu me mettera com saias, em Coimbra, no Terreiro da
Herva! Alli, no meu bahú, tinha eu documentos do meu peccado, a
photographia da Thereza dos Quinze, uma fita de sêda, e uma carta
d'ella, a mais dôce, em que me chamava «unico affecto da sua alma» e me
pedia dezoito tostões!
Eu cosera essas reliquias dentro do fôrro d'um
collete de pano, receando as incessantes rebuscas da titi, por entre a
minha roupa intima. Mas lá estavam, no bahú de que ella guardava a
chave, dentro do collete, fazendo uma dureza de cartão que qualquer dia
poderiam palpar os seus dedos desconfiados... E eu acabava logo para a
titi!
Abri devagarinho o bahú, descosi o fôrro, tirei a carta deliciosa da
Thereza, a fita que conservára o aroma da sua pelle, e a sua
photographia, de mantilha. Na pedra da varanda, sem piedade, queimei
tudo, amabilidades e feições: e sacudi desesperadamente para o saguão as
cinzas da minha ternura.
N'essa semana não ousei voltar á rua da Fé. Depois, um dia que
choviscava, fui lá, ao escurecer, encolhido sob o meu guarda-chuva. Um
visinho, vendo-me espreitar de longe as janellas negras e mortas do
casebre, disse-me que o snr. Godinho, coitado, fôra para o hospital
n'uma maca.
Desci, triste, ao comprido das grades do Passeio. E, no crepusculo
humido, tendo roçado bruscamente por outro guarda-chuva, ouvi de repente
o meu nome de Coimbra, lançado com alegria.
--Oh, Raposão!
Era o Silverio, por alcunha o Rinchão, meu condiscipulo, e companheiro
de casa das Pimentas. Estivera passando esse mez no Alemtejo, com seu
tio, ricaço illustre, o barão d'Alconchel. E agora, de volta, ia vêr uma
Ernestina, rapariguita loura, que morava no Salitre, n'uma casa côr de
rosa, com roseirinhas á varanda.
--Queres tu vir cá um bocado, ó Raposão? Está lá outra rapariga bonita,
a Adelia... Tu não conheces a Adelia? Então que diabo, vem vêr a
Adelia... É um mulherão!
Era, um domingo, noite de partida da titi; eu devia recolher
religiosamente ás oito horas. Cocei a barba, indeciso. O Rinchão fallou
da brancura dos braços da Adelia: e eu comecei a caminhar ao lado do
Rinchão, enfiando as luvas pretas.
Munidos d'um cartucho de pasteis e de uma garrafa de Madeira,
encontrámos a Ernestina a coser um elastico nas suas botinas de duraque.
E a Adelia, estendida no sofá, de chambre e em saia branca, com os
chinelos cahidos no tapete, fumava um cigarro languido. Eu sentei-me ao
lado d'ella, commovido e mono, com o meu guarda-chuva entre os joelhos.
Só quando o Silverio e Ernestina correram dentro á cozinha, abraçados, a
buscar copos para o Madeira, ousei perguntar á Adelia, córando:
--Então a menina d'onde é?
Era de Lamego. E eu, novamente acanhado, só pude gaguejar que era
tristonho aquelle tempo de chuva. Ella pediu-me outro cigarro,
cortezmente, dizendo-me--o cavalheiro. Apreciei estes modos. As mangas
largas do seu roupão, escorregando descobriam braços tão brancos e
macios que entre elles a Morte mesma deveria ser deleitosa.
Fui eu que lhe offereci o prato onde a Ernestina collocára os pasteis.
Ella quiz saber o meu nome. Tinha um sobrinho que tambem se chamava
Theodorico; e isto foi como um fio subtil e forte que veio, do seu
coração, enrodilhar-se no meu.
--Porque é que o cavalheiro não põe o guarda-chuva alli a um canto?
disse-me ella, rindo.
O brilho picante dos seus dentinhos miudos fez desabrochar dentro em mim
uma flôr de madrigal.
--É para não me tirar d'aqui d'ao pé da menina nem um instantinho que
seja.
Ella fez-me uma cocega lenta no pescoço. Eu, aboborado de gôzo, bebi o
resto do Madeira que ella deixára no calice.
A Ernestina, poetica, e cantando o fado, aninhou-se nos joelhos do
Rinchão. Então a Adelia, revirando-se languidamente, puxou-me a face--e
os meus labios encontraram os seus no beijo mais sério, mais sentido,
mais profundo que até ahi abalára o meu sêr.
N'esse dôce instante, um relogio medonho, com o mostrador fingindo uma
face de lua, e que parecia espreitar-me de sobre o marmore d'uma mesa do
mogno, d'entre dois vasos sem flôres, começou a dar dez, horas, fanhoso,
ironico, pachorrento.
Jesus! era a hora do chá em casa da titi! Com que terror eu trepei,
esbaforido, sem mesmo abrir o guarda-chuva, as viellas escuras e
infindaveis que levam ao Campo de Sant'Anna! Em casa, nem tirei as botas
enlameadas. Enfiei pela sala; e vi logo, lá ao fundo, no sofá de
damasco, os oculos da titi, mais negros, assanhados, esperando por mim e
fuzilando. Ainda balbuciei:
--Titi...
Mas já ella gritava, esverdinhada de cólera, sacudindo os punhos.
--Relaxações em minha casa não admitto! Quem quizer viver aqui ha de
estar ás horas que eu marco! Lá deboches e porcarias, não, emquanto eu
fôr viva! E quem não lhe agradar, rua!
Sob a rajada estridente da indignação da snr.^a D. Patrocinio, padre
Pinheiro e o tabellião Justino tinham dobrado a cabeça embaçados. O dr.
Margaride, para apreciar conscienciosamente a minha culpa, puxou o seu
pesado relogio d'ouro. E foi o bom Casimiro que interveio, como
sacerdote, como procurador, influente e suave.
--D. Patrocinio tem razão, tem muita razão em querer ordem em casa...
Mas talvez o nosso Theodorico se tivesse demorado um pouco mais no
Martinho, a ouvir fallar d'estudos, de compendios...
Exclamei amargamente:
--Nem isso, padre Casimiro! Nem no Martinho estive! Sabe onde estive? No
convento da Encarnação! É verdade, encontrei um condiscipulo meu, que ia
lá buscar a irmã. Hoje era festa, a irmã tinha ido passar o dia com uma
tia, uma commendadeira... Estivemos á espera, a passear no pateo... A
irmã vai casar, elle andou a contar-me do noivo, e do enxoval, e do
apaixonada que ella está... Eu morto por me safar, mas com ceremonia do
rapaz, que é sobrinho do barão d'Alconchel... E elle zás, zás, a fallar
da irmã, e do namoro, e das cartas...
A tia Patrocinio uivou de furor.
--Olha que conversa! Que porcaria de conversa! Que indecente conversa
para o pateo d'uma casa de religião! Cala-te, alma perdida, que até
devias ter vergonha!... E fique entendendo! Para outra vez que venha a
estas horas, não me entra em casa! Fica na rua, como um cão...
Então o dr. Margaride estendeu a mão pacificadora e solemne:
--Está tudo explicado! O nosso Theodorico foi imprudente, mas o sitio
onde esteve é respeitavel... E eu conheço o barão d'Alconchel. É um
cavalheiro da maior circumspecção, e um dos mais abastados do
Alemtejo... Talvez mesmo um dos mais ricos proprietarios de Portugal...
O mais rico, direi!... Mesmo lá fóra não haverá fortuna territorial que
lhe exceda. Nem que se lhe compare!... Só em porcos! Só em cortiça!
Centenares de contos! milhões!
Erguera-se; o seu vozeirão empolado rolava serras d'ouro. E o bom
Casimiro murmurava, ao meu lado, com brandura:
--Tome o seu chásinho, Theodorico, vá tomando o seu chásinho. E creia
que a tia não deseja senão o seu bem...
Puxei, com a mão a tremer, a minha chavena de chá: e, remexendo
desfallecidamente o fundo d'assucar, pensava em abandonar para sempre a
casa d'aquella velha medonha que assim, me ultrajava diante da
Magistratura e da Igreja, sem consideração pela barba que me começava a
nascer, forte, respeitavel e negra.
Mas, aos domingos, o chá era servido nas pratas do commendador G.
Godinho. Eu via-as, macissas e resplandecentes, diante de mim: o grande
bule terminando em bico de pato; o assucareiro cuja aza tinha a fórma
d'uma cobra assanhada; e o paliteiro gentil em figura de macho trotando
sob os seus alforges. E tudo pertencia á titi. Que rica que era a titi!
Era necessario ser bom, agradar sempre á titi!...
Por isso, mais tarde, quando ella penetrou no oratorio para cumprir o
terço, já eu lá estava, de rojos, gemendo, martellando o peito, e
supplicando ao Christo de ouro que me perdoasse ter offendido a titi.
* * * * *
Um dia emfim cheguei a Lisboa, com as minhas cartas de doutor mettidas
n'um canudo de lata. A titi examinou-as reverente, achando um sabor
ecclesiastico ás linhas em latim, ás paramentosas fitas vermelhas, e ao
sêllo dentro do seu relicario.
--Está bom, disse ella, estás doutor. A Deus Nosso Senhor o deves, vê
não lhe faltes...
Corri logo ao oratorio, com o canudo na mão, agradecer ao Christo de
ouro o meu glorioso grau de bacharel.
Na manhã seguinte, estando ao espelho, a espontar a barba, que agora
tinha cerrada e negra, o padre Casimiro entrou-me pelo quarto, risonho e
a esfregar as mãos.
--Boa nova vos trago aqui, snr. doutor Theodorico!...
E depois de me acariciar, segundo o seu affectuoso costume, com
palmadinhas dôces nos rins, o santo procurador revelou-me que a titi,
satisfeita commigo, decidira comprar-me um cavallo para eu dar honestos
passeios, e espairecer por Lisboa.
--Um cavallo! Oh, padre Casimiro!
Um cavallo. E além d'isso, não querendo que seu sobrinho, já barbado, já
letrado, soffresse um vexame, por lhe faltar ás vezes um troco para
deitar na salva de Nossa Senhora do Rosario, a titi estabelecia-me uma
mezada de tres moedas.
Abracei com calor o padre Casimiro. E desejei saber se a amoravel
intenção da titi era que eu não tivesse outra occupação além de cavalgar
por Lisboa, e lançar pratinhas na salva de Nossa Senhora.
--Olhe, Theodorico, eu parece-me que a titi não quer que você tenha
outro mister senão temer a Deus... O que lhe digo é que o amigo vai
passal-a boa e regalada... E agora, ande, vá-lhe lá dentro agradecer, e
diga-lhe uma coisinha mimosa.
Na saleta, onde brilhavam pelas paredes os feitos piedosos do patriarcha
S. José, a titi, sentada a um canto do sofá de riscadinho, fazia meia,
com um chale de Tonkin pelos hombros.
--Titi, murmurei eu encolhido, venho aqui agradecer...
--Está bom, vai com Deus.
Então, devotamente, beijei-lhe a franja do chale. A titi gostou. Eu fui
com Deus.
Começou d'ahi, farta e regalada, a minha existencia de sobrinho da
snr.^a D. Patrocinio das Neves. Ás oito horas, pontualmente, vestido de
preto, ia com a titi á igreja de Sant'Anna, ouvir a missa do padre
Pinheiro. Depois d'almoço, tendo pedido licença á titi, e rezadas no
oratorio tres Gloria Patri contra as tentações, sahia a cavallo, de
calça clara. Quasi sempre a titi me dava alguma incumbencia beata:
passar em S. Domingos, e dizer a oração pelos tres santos martyres do
Japão; entrar na Conceição Velha, e fazer o acto de desaggravo pelo
Sagrado Coração de Jesus...
E eu receava tanto desagradar-lhe, que nunca deixava de dar estes ternos
recados que ella mandava a casa do Senhor.
Mas era este o momento desagradavel do meu dia: ás vezes, ao sahir,
surrateiro, do portão da igreja, topava com algum condiscipulo
republicano, dos que me acompanhavam em Coimbra, nas tardes de
procissão, chasqueando o Senhor da Cana Verde.
--Oh, Raposão! pois tu agora...
Eu negava, vexado:
--Ora essa! Não me faltava mais nada! Sou mesmo lá de carolices... Qual!
entrei aqui por causa d'uma rapariga... Adeus, tenho a egua á espera.
Montava--e de luva preta, a perna bem collada á sella, um botãosinho de
camelia no peito, ia caracolando, em ocio e luxo, até ao largo do
Loreto. Outras vezes deixava a egua no Arco do Bandeira, e gozava uma
manhã regalada no bilhar do Montanha.
Antes do jantar, em chinelas, no oratorio com a titi, eu fazia a
jaculatoria a S. José, aio de Jesus, custodio de Maria e amorosissimo
patriarcha. Á mesa, adornada apenas por compoteiras de doce de calda em
torno d'uma travessa d'aletria, eu contava á titi o meu passeio, as
igrejas em que me deleitára, e quaes os altares alumiados. A Vicencia
escutava com devoção, perfilada no seu lugar costumado, entre as duas
janellas, onde um retrato de nosso santo padre Pio IX enchia a tira de
parede verde, tendo por baixo, pendente d'um cordão, um velho oculo
d'alcance, reliquia do commendador G. Godinho. Depois do café a titi,
lentamente, cruzava os braços; e o seu carão sumia-se, dormente e
pesado, na sombra do lenço rôxo.
Eu ia enfiar as botas; e, authorisado agora por ella a recrear-me fóra
de casa até ás nove e meia, corria ao fim da rua da Magdalena, ao pé do
largo dos Caldas. Ahi, com resguardo, encolhido na gola do meu
sobretudo, cosido com o muro, como se o candieiro de gaz que alli havia
fosse o olho inexoravel da titi--penetrava sofregamente na escadinha da
Adelia...
Sim, da Adelia! Porque nunca mais me esquecera, desde a noite em que o
Rinchão me levou ao Salitre, o beijo que ella me dera, languida e
branca, sobre o sofá. Em Coimbra procurára mesmo fazer-lhe versos: e
esse amor dentro do meu peito foi no ultimo anno de Universidade, no
anno de Direito ecclesiastico, como um maravilhoso lirio que ninguem via
e que perfumava a minha vida... Apenas a titi me estabeleceu a mezada
das tres moedas, corri em triumpho ao Salitre; lá havia as roseirinhas á
janella, mas a Adelia já lá não estava. E foi ainda o prestante
Rinchão que me mostrou esse primeiro andar, junto ao largo dos Caldas,
onde ella agora vivia patrocinada por Eleuterio Serra, da firma Serra
Brito & C.^a, com loja de fazendas e moelas na Conceição Velha.
Mandei-lhe uma carta ardente e séria, pondo reverentemente no alto:
«Minha senhora.» Ella respondeu, com dignidade:--«O cavalheiro póde vir
aqui ao meio dia.» Levei-lhe uma caixinha de pastilhas de chocolate,
atada com uma fita de sêda azul: pizando commovido a esteira nova da
sala, eu antevia, pela engommada brancura das bambinellas, a frescura
das suas saias; e o rigido alinho dos moveis revelava-me a rectidão dos
seus sentimentos. Ella entrou, um pouco constipada, com um chale
vermelho pelos hombros. Reconheceu logo o amigo do Rinchão; fallou da
Ernestina, com severidade, chamando-lhe «porcalhona.» E a sua voz
enrouquecida, o seu defluxo, davam-me o desejo de a curar nos meus
braços, d'um longo dia d'agasalho e somnolencia, sob o peso dos
cobertores, na penumbra molle da sua alcova. Depois ella quiz saber se
eu era empregado ou estava no commercio... Eu contei-lhe com orgulho a
riqueza da titi, os seus predios, as suas pratas. Disse-lhe, com as suas
mãos grossas presas nas minhas:
--Se a titi agora rebentasse, eu é que lhe punha á menina uma casa chic!
Ella murmurou, banhando-me todo na negra doçura do seu olhar:
--Ora! o cavalheiro, se apanhasse o bago, não se importava mais commigo!
Ajoelhei sobre a esteira, tremulo, esmagando o peito contra os seus
joelhos, offertando-me como uma rez; ella abriu o seu chale, aceitou-me
misericordiosamente.
Agora, á noitinha (emquanto Eleuterio, no club da rua Nova do Carmo,
jogava a manilha) eu tinha alli na alcova da Adelia a radiante festa da
minha vida. Levára para lá um par de chinelas--era o eleito do seu seio.
Ás nove e meia, despenteada, envolta á pressa n'um roupão de flanella,
com os pés nús, acompanhava-me pela escadinha de traz, colhendo em cada
degrau, nos meus labios, um beijo lento e saudoso.
--Adeus, Délinha!
--Agasalha-te, riquinho!
E eu recolhia devagar ao campo de Sant'Anna, ruminando o meu gozo!
O verão passou, languidamente. Os primeiros ventos d'outono levaram as
andorinhas e as folhagens do campo de Sant'Anna: e logo n'esse outubro,
de repente, a minha vida se tornou mais facil, mais larga. A titi
mandára-me fazer uma casaca; e eu estreei-a, com permissão d'ella, indo
ouvir a S. Carlos o Poliuto--opera que o dr. Margaride recommendára,
como «repassada de sentimentos religiosos e cheia de elevada lição.» Fui
com elle, de luvas brancas, frizado. Depois, no outro dia, ao almoço,
contei á titi o devoto enredo, os idolos derrubados, os canticos, as
fidalgas que estavam nos camarotes, e de que lindo velludo vestia a
rainha.
--E sabe quem me veio fallar, titi? O barão d'Alconchel, o ricaço, tio
d'aquelle rapaz que foi meu condiscipulo. Veio apertar-me a mão, esteve
um bocado commigo no salão... Tratou-me com muita consideração.
A titi gostou d'esta consideração.
Depois, tristemente, como um moralista magoado, queixei-me do nedio
decote d'uma senhora immodesta, núa nos braços, núa no peito, mostrando
toda essa carne, esplendida e irreligiosa, que é a desolação do justo e
a angustia da Igreja.
--Jesus, Senhor, que vexame! Acredite a titi, estava com nojo!
A titi gostou d'este nojo.
E passados dias, depois do café, quando eu me dirigia, ainda de
chinelas, ao oratorio, a fazer uma curta petição ás chagas do nosso
Christo d'ouro--a titi, já de braços cruzados e somnolenta, disse-me
d'entre a sombra do lenço:
--Está bom, se queres, volta hoje a S. Carlos... E lá quando te
appetecer, não te acanhes, tens licença, pódes ir gozar um bocado de
musica... Agora que estás um homem, e que parece que tens proposito, não
me importa que fiques fóra, até ás onze ou onze e meia... Em todo o caso
a essa hora quero estar já de porta fechada, e tudo prompto, para
começarmos o terço.
Ella não viu o triumphante lampejar dos meus olhos. Eu murmurei,
requebrado, a babar-me de gosto devoto:
--Lá o terço, titi, lá o meu querido terço não perdia eu, nem pelo maior
divertimento... Nem que el-rei me convidasse para um chásinho no paço!
Corri, delirante, a enfiar a casaca. E este foi o começo d'essa anhelada
liberdade que eu conquistára laboriosamente, vergando o espinhaço diante
da titi, macerando o peito diante de Jesus! Liberdade bem vinda, agora
que Eleuterio Serra partira para Paris, fazer os seus fornecimentos, e
deixára a Adelia só, solta, bella, mais jovial, mais fogosa!
Sim, decerto, eu ganhára a confiança da titi com os meus modos pontuaes,
sisudos, servis e beatos! Mas o que a levára a alargar assim, com
generosidade, as minhas horas de honesto recreio, fôra (como ella disse
confidencialmente ao padre Casimiro) a certeza de que eu «me portava com
religião e não andava atraz de saias.»
Porque para a tia Patrocinio todas as acções humanas, passadas por fóra
dos portaes das igrejas, consistiam em andar atraz de calças ou andar
atraz de saias:--e ambos estes dôces impulsos naturaes lhe eram
igualmente odiosos!
Donzella, e velha, e resequida como um galho de sarmento; não tendo
jámais provado na livida pelle senão os bigodes do commendador G.
Godinho, paternaes e grisalhos; resmungando incessantemente, diante de
Christo nú, essas jaculatorias das Horas de piedade, soluçantes de
amor divino--a titi entranhára-se, pouco a pouco, d'um rancor invejoso e
amargo a todas as fórmas e a todas as graças do amor humano.
E não lhe bastava reprovar o amor como coisa profana: a snr.^a D.
Patrocinio das Neves fazia uma carantonha, e varria-o como coisa suja.
Um moço grave, amando sériamente, era para ella «uma porcaria!» Quando
sabia d'uma senhora que tivera um filho, cuspia para o lado,
rosnava--«que nojo!» E quasi achava a Natureza obscena por ter creado
dois sexos.
Rica, apreciando o conforto, nunca quizera em casa um escudeiro--para
que não houvesse na cozinha, nos corredores, saias a roçar com calças.
E apesar de irem embranquecendo os cabellos da Vicencia, de ser
decrepita e gaga a cozinheira, de não ter dentes a outra criada chamada
Eusebia, andava-lhes sempre remexendo desesperadamente nos bahús, e até
na palha dos enxergões, a vêr se descobria photographia d'homem, carta
d'homem, rasto d'homem, cheiro d'homem.
Todas as recreações moças; um passeio gentil com senhoras, em burrinhos;
um botão de rosa orvalhado offerecido na ponta dos dedos; uma decorosa
contradança em jucundo dia de Paschoa; outras alegrias, ainda mais
candidas, pareciam á titi perversas, cheias de sujidade, e chamava-lhes
relaxações. Diante d'ella já os sisudos amigos da casa não ousavam
mencionar d'essas emoventes historias, lidas nas gazetas, e em que
transparecem motivos d'amor--porque isso a escandalisava como o
desbragamento de uma nudez.
--Padre Pinheiro! gritou ella um dia furiosa, com os oculos chammejantes
para o desventuroso ecclesiastico, ao ouvil-o narrar d'uma criada que em
França atirára o filho á sentina. Padre Pinheiro! Faça favor de me
respeitar... Não é lá pela latrina! É pela outra porcaria!
Mas era ella propria que sem cessar alludia a desvarios e a peccados da
Carne--para os vituperar, com odio: atirava então o novello de linha
para cima da mesa, espetando-lhe raivosamente as agulhas de meia--como
se trespassasse alli, tornando-o para sempre frio, o vasto e inquieto
coração dos homens. E quasi todos os dias, com os dentes rilhados,
repetia (referindo-se a mim) que se uma pessoa do seu sangue, e que
comesse o seu pão, andasse atraz de saias, ou se désse a relaxações,
havia d'ir para a rua, escorraçado a vassoura, como um cão.
Por isso agora as minhas precauções eram tão apuradas que, para evitar
me ficasse na roupa ou na pelle o delicioso cheiro da Adelia, eu trazia
na algibeira bocados soltos d'incenso. Antes de galgar a triste
escadaria de casa, penetrava subtilmente na cavalhariça deserta, ao
fundo do pateo; queimava no tampo d'uma barrica vazia um pedaço da
devota resina; e alli me demorava, expondo ao aroma purificador as abas
do jaquetão e as minhas barbas viris... Depois subia; e tinha a
satisfação de vêr logo a titi farejar, regalada:
--Jesus, que rico cheirinho a igreja!
Modesto, e com um suspiro, eu murmurava:
--Sou eu, titi...
Além d'isso, para melhor a persuadir «da minha indifferença por saias,»
colloquei um dia, no soalho do corredor, como perdida, uma carta com
sêllo--certo que a religiosa D. Patrocinio, minha senhora e tia, a
abriria logo, vorazmente. E abriu, e gostou. Era escripta por mim a um
condiscipulo d'Arrayollos; e dizia, em letra nobre, estas cousas
edificantes: «Saberás que fiquei de mal com o Simões, o de philosophia,
por elle me ter convidado a ir a uma casa deshonesta. Não admitto
d'estas offensas. Tu lembras-te bem como já em Coimbra eu detestava taes
relaxações. E parece-me ser uma grandissima cavalgadura aquelle que, por
causa d'uma distracção que é fogo-viste-linguiça, se arrisca a penar,
por todos os seculos e seculos, amen, nas fogueiras de Satanaz, salvo
seja! Ora n'uma d'essas refinadissimas asneiras não é capaz de cahir o
teu do C.--Raposo.»
A titi leu, a titi gostou. E agora eu vestia a minha casaca, dizia-lhe
que ia ouvir a Norma, beijava com unção os ossos dos seus dedos;--e
corria, ao largo dos Caldas, á alcova da Adelia, a afundar-me
perdidamente nas beatitudes do Peccado. Alli, á meia luz que dava
através da porta envidraçada o candieiro de petroline da sala, os
cortinados de cambraia e as saias dependuradas tomavam brancuras
celestes de nuvem; o cheiro dos pós d'arroz excedia em doçura o olor dos
junquilhos mysticos; eu estava no céo, eu era S. Theodorico; e sobre os
hombros nús da minha amada desenrolavam-se as madeixas do seu cabello
negro, forte e duro como a cauda d'um corcel de guerra.
N'uma d'essas noites, eu sahia d'uma confeitaria do Rocio, de comprar
trouxas d'ovos para levar á minha Adelia--quando encontrei o dr.
Margaride que me annunciou, depois do seu abraço paternal, que ia a S.
Carlos vêr o Propheta.
--E você, vejo-o de casaca, naturalmente tambem vem...
Fiquei varado. Com effeito vestira a casaca, dissera á titi que ia gozar
o Propheta, opera de tanta virtude como uma santa instrumental
d'igreja... E agora tinha de soffrer o Propheta, deveras, entalado
n'uma cadeira da Geral, roçando o joelho do douto magistrado--em vez de
preguiçar n'um colchão amoroso, vendo a minha deusa, em camisa, comer o
seu docinho d'ovos.
--Sim, com effeito, tambem eu ia d'aqui para o Propheta, murmurei
aniquilado. Diz que é uma musicasinha de muita virtude... A titi gostou
muito que eu viesse.
Com o meu inutil cartucho de trouxas d'ovos, lá fui subindo,
melancolicamente, ao lado do dr. Margaride, a rua Nova do Carmo.
Occupamos as nossas cadeiras. E na sala resplandecente, branca e com
tons d'ouro, eu pensava saudosamente na alcova sombria da Adelia, e no
desalinho das suas saias--quando reparei que d'uma friza ao lado uma
senhora loura e madura, uma Ceres outonal, vestida de sêda côr de palha,
voltava para mim, a cada dôce arcada das rebecas, os seus olhos claros e
sérios.
Perguntei logo ao dr. Margaride se conhecia aquella dama «que eu
costumava encontrar ás sextas na igreja da Graça, visitando o Senhor dos
Passos, com uma devoção, um fervor...»
--O sujeito que está por traz, a abrir a bocca, é o visconde de Souto
Santos. E ella ou é a mulher, a viscondessa de Souto Santos, ou a
cunhada, a viscondessa de Villar-o-Velho...
Á sahida, a viscondessa (de Souto Santos ou de Villar-o-Velho) ficou um
momento á porta esperando a sua carruagem, embrulhada n'uma capa branca
que uma pennugem orlava, delicadamente; a sua cabeça pareceu-me mais
altiva, incapaz de rolar, tonta e pallida, n'um travesseiro d'amor; a
cauda côr de palha alastrava-se sobre as lages; era esplendida, era
viscondessa; e outra vez me procuraram, me trespassaram os seus olhos
claros e sérios.
A noite estava estrellada. E, descendo o Chiado em silencio ao lado do
dr. Margaride, eu pensava que, quando todo o ouro da titi fosse meu e
dourasse a minha pessoa, eu poderia então conhecer uma viscondessa de
Souto Santos ou de Villar-o-Velho, não na sua friza, mas na minha
alcova, já cahida a grande capa branca, despidas já as sêdas côr de
palha, alva só do brilho da sua nudez, e fazendo-se pequenina entre os
meus braços... Ai, quando chegaria a hora, dôce entre todas, de morrer a
titi?
--Quer você vir tomar o seu chá ao Martinho? perguntou-me o dr.
Margaride ao desembocarmos no Rocio. Não sei se você conhece a torrada
do Martinho... É a melhor torrada de Lisboa.
No Martinho, já silencioso, o gaz ia adormecendo entre os espelhos
baços; e havia apenas n'uma mesa do fundo um moço triste, com a cabeça
enterrada entre os punhos diante d'um capilé.
O Margaride encommendou o chá--e vendo-me olhar com inquietação os
ponteiros do relogio, affirmou-me que eu chegaria a casa ainda a horas
de fazer a minha tocante devoção com a titi.
--A titi agora, disse eu, não se importa que eu esteja até mais tarde...
A titi agora louvado seja Deus, tem mais confiança em mim.
--E você merece-o... Faz-lhe a vontade, é sisudo... Ella pouco a pouco
tem-lhe ganho amizade, segundo me diz o Casimiro...
Então lembrei-me da velha affeição que ligava o dr. Margaride ao padre
Casimiro, procurador da tia Patrocinio e seu zeloso confessor. E,
arrebatando a opportunidade, dei um leve suspiro, abri o meu coração ao
magistrado, largamente, como a um pai.
--É verdade, a titi tem-me amizade... Mas acredite v. exc.^a, dr.
Margaride, que o meu futuro inquieta-me ás vezes... Olhe que tenho
pensado mesmo em ir a um concurso para delegado. Até já indaguei se
seria difficil entrar como despachante na alfandega. Porque emfim a titi
é rica, é muito rica; eu sou seu sobrinho, unico parente, unico
herdeiro; mas...
E olhei anciosamente para o dr. Margaride, que, pelo loquaz padre
Casimiro, conhecia talvez o testamento da titi... O silencio grave em
que elle ficou, com as mãos cruzadas sobre a mesa, pareceu-me sinistro:
e n'esse instante o criado trouxe a bandeja do chá, sorrindo, e
felicitando o magistrado por o vêr melhor do seu catarrho.
--Deliciosa torrada! murmurou o doutor.
--Excellente torrada! suspirei eu cortezmente.
De vez em quando o dr. Margaride esfuracava um queixal; depois limpava a
face, os dedos; e recomeçava a mastigar devagar, com delicadeza e com
religião.
Eu arrisquei outra palavra timida.
--A titi, é verdade, tem-me amizade...
--A titi tem-lhe amizade, atalhou com a bocca cheia o magistrado, e você
é o seu unico parente... Mas a questão é outra, Theodorico. É que você
tem um rival.
--Rebento-o! gritei eu, irresistivelmente, com os olhos em chammas,
esmurrando o marmore da mesa.
O moço triste, lá ao fundo, ergueu a face de cima do seu capilé. E o dr.
Margaride reprovou com severidade a minha violencia.
--Essa expressão é impropria d'um cavalheiro, e d'um moço comedido. Em
geral não se rebenta ninguem... E além d'isso o seu rival não é outro,
Theodorico, senão Nosso Senhor Jesus Christo!
Nosso Senhor Jesus Christo? E só comprehendi, quando o esclarecido
jurisconsulto, já mais calmo, me revelou que a titi, ainda no ultimo
anno da minha formatura, tencionava deixar a sua fortuna, terras e
predios, a Irmandades da sua sympathia e a padres da sua devoção.
--Estou perdido! murmurei.
Os meus olhos, casualmente, encontraram, lá ao fundo, o moço triste
diante do seu capilé. E pareceu-me que elle se assemelhava a mim como um
irmão, que era eu proprio, Theodorico, já desherdado, sordido, com as
botas cambadas, vindo alli ruminar as dôres da minha vida, á noite,
diante d'um capilé.
Mas o dr. Margaride acabára a torrada. E estendendo regaladamente as
pernas, consolou-me, de palito na bocca, affavel e perspicaz.
--Nem tudo está perdido, Theodorico. Não me parece que esteja tudo
perdido... É possivel que a senhora sua tia tenha mudado d'idéa... Você
é bem comportado, amima-a, lê-lhe o jornal, reza o terço com ella...
Tudo isto influe. Que é necessario dizel-o, o rival é forte!
Eu gemi:
--É d'arromba!
--É forte. E devo acrescentar, digno de todo o respeito... Jesus Christo
padeceu por nós, é religião do Estado, não ha senão curvar a cabeça...
Olhe, quer você a minha opinião? Pois ahi a tem, franca e sem rebuço,
para lhe servir de guia... Você vem a herdar tudo, se D. Patrocinio, sua
tia e minha senhora, se convencer que deixar-lhe a fortuna a você é como
deixal-a á Santa Madre Igreja...
O magistrado pagou o chá, nobremente. Depois, na rua, já abafado no seu
paletot, ainda me disse baixinho:
--Com franqueza, que tal, a torrada?
--Não ha melhor torrada em Lisboa, dr. Margaride.
Elle apertou-me a mão com affecto--e separamo-nos, quando estava dando a
meia noite no velho relogio do Carmo.
Estugando o passo pela rua Nova da Palma, eu sentia agora bem
claramente, bem, amargamente, o erro da minha vida... Sim, o erro!
Porque até ahi, essa minha devoção complicada, com que eu procurára
agradar á titi e ao seu ouro, fôra sempre regular, mas nunca fôra
fervente. Que importava murmurar com correcção o terço diante de Nossa
Senhora do Rosario? Diante de Nossa Senhora em todas as suas
encarnações, e bem em evidencia para commover a titi, eu devia mostrar
habilmente uma alma ardendo em labaredas de amor beato, e um corpo
pisado, penitente, ferido pelos picos dos cilicios... Até ahi a titi
podia dizer com approvação: «É exemplar.» Era-me preciso, para herdar,
que ella exclamasse um dia, babada, de mãos postas: «É santo!»
Sim! eu devia identificar-me tanto com as coisas ecclesiasticas e
submergir me n'ellas de tal sorte, que a titi, pouco a pouco, não
podesse distinguir-me claramente d'esse conjunto rançoso de cruzes,
imagens, ripanços, opas, tochas, bentinhos, palmitos, andores, que era
para ella a Religião e o Céo; e tomasse a minha voz pelo santo ciciar
dos latins de missa; e a minha sobrecasaca preta lhe parecesse já
salpicada d'estrellas, e diaphana como a tunica de bem-aventurança.
Então, evidentemente, ella testaria em meu favor--certa que testava em
favor de Christo e da sua dôce Madre Igreja!
Porque agora, eu estava bem decidido a não deixar ir para Jesus, filho
de Maria, a aprazivel fortuna do commendador G. Godinho. Pois quê! Não
bastavam ao Senhor os seus thesouros incontaveis; as sombrias cathedraes
de marmore que atulham a terra e a entristecem; as inscripções, os
papeis de credito que a piedade humana constantemente averba em seu
nome; as pás d'ouro que os Estados, reverentes, lhe depositam aos pés
trespassados de pregos; as alfaias, os calices, e os botões de punho de
diamantes que elle usa na camisa, na sua igreja da Graça? E ainda
voltava, do alto do madeiro, os olhos vorazes para um bule de prata, e
uns insipidos predios da Baixa! Pois bem! disputaremos esses mesquinhos,
fugitivos haveres--tu, ó filho do Carpinteiro, mostrando á titi a chaga
que por ella recebeste, uma tarde, n'uma cidade barbara da Asia, e eu
adorando essa chaga, com tanto ruido e tanto fausto, que a titi não
possa saber onde está o merito, se em ti que morreste por nos amar de
mais, se em mim que quero morrer por não te saber amar bastante!...
Assim pensava, olhando de través o céo, no silencio da rua de S. Lazaro.
Quando cheguei a casa, senti que a titi estava no oratorio, sósinha, a
rezar. Enfiei para o meu quarto, surrateiramente; descalcei-me; despi a
casaca; esguedelhei o cabello; atirei-me de joelhos para o soalho--e fui
assim, de rastos, pelo corredor, gemendo, carpindo, esmurrando o peito,
clamando desoladamente por Jesus, meu Senhor...
Ao ouvir, no silencio da casa, estas lugubres lamentações de arrastada
penitencia, a titi veio á porta do oratorio, espavorida.
--Que é isso, Theodorico, filho, que tens tu?...
Abati-me sobre o soalho, aos soluços, desfallecido de paixão divina.
--Desculpe, titi... Estava no theatro com o dr. Margaride, estivemos
ambos a tomar chá, a conversar da titi... E vai de repente, ao voltar
para casa, alli na rua Nova da Palma, começo a pensar que havia de
morrer, e na salvação da minha alma, e em tudo o que Nosso Senhor
padeceu por nós, e dá-me uma vontade de chorar... Emfim, a titi faz
favor, deixa-me aqui um bocadinho só, no oratorio, para alliviar...
Muda, impressionada, ella accendeu reverentemente, uma a uma, todas as
velas do altar. Chegou mais para a borda uma imagem de S. José, favorito
da sua alma, para que fosse elle o primeiro a receber a ardente rajada
de preces que ia escapar-se, em tumulto, do meu coração cheio e ancioso.
Deixou-me entrar, de rastos. Depois, em silencio, desappareceu, cerrando
o reposteiro com recato. E eu alli fiquei, sentado na almofada da titi,
coçando os joelhos, suspirando alto--e pensando na viscondessa de Souto
Santos ou de Villar-o-Velho, e nos beijos vorazes que lhe atiraria por
aquelles hombros maduros e succulentos, se a podesse ter só um instante,
alli mesmo que fosse, no oratorio, aos pés de ouro de Jesus, meu
Salvador!
* * * * *
Corrigi então a minha devoção e tornei-a perfeita. Pensando que o
bacalhau das sextas-feiras não fosse uma sufficiente mortificação,
n'esses dias, diante da titi, bebia asceticamente um copo d'agua e
trincava uma côdea de pão: o bacalhau comia-o á noite, de cebolada, com
bifes á ingleza, em casa da minha Adelia. No meu guarda-roupa, n'esse
duro inverno, houve apenas um paletot velho, tão renunciado me quiz
mostrar aos culpados regalos da carne; mas orgulhava-me de ter lá,
purificando os cheviottes profanos, a minha opa rôxa de irmão do Senhor
dos Passos, e o devoto habito cinzento da Ordem Terceira de S.
Francisco. Sobre a commoda ardia uma lamparina perennal diante da
lithographia colorida de Nossa Senhora do Patrocinio: eu punha todos os
dias rosas dentro d'um copo, para lhe perfumar o ar em redor; e a titi,
quando vinha remexer nas minhas gavetas, ficava a olhar a sua padroeira,
desvanecida, sem saber se era á Virgem, ou se era a ella,
indirectamente, que eu dedicava aquelle preito da luz e o louvor dos
aromas. Nas paredes dependurei as imagens dos santos mais excelsos, como
galeria d'antepassados espirituaes de quem tirava o constante exemplo
das difficeis virtudes; mas não houve de resto no céo santo, por mais
obscuro, a quem eu não offertasse um cheiroso ramalhete de Padre-Nossos
em flôr. Fui eu que fiz conhecer á titi S. Telesforo, Santa Secundina, o
beato Antonio Estronconio, Santa Restituta, Santa Umbulina, irmã do grão
S. Bernardo, e a nossa dilecta e suavissima patricia Santa Basilissa,
que é solemnisada juntamente com S. Hypacio, n'esse festivo dia d'agosto
em que embarcam os cirios para a Atalaya.
Prodigiosa foi então a minha actividade devota! Ia a matinas, ia a
vesperas. Jámais falhei igreja ou ermida onde se fizesse a adoração ao
Sagrado Coração de Jesus. Em todas as exposições do Santissimo eu lá
estava, de rojos. Partilhava sofregamente de todos os desaggravos ao
Sacramento. Novenas em que eu rezei contam-se pelos lumes do céo. E o
Septenario das Dôres era um dos meus dôces cuidados.
Havia dias em que, sem repousar, correndo pelas ruas, esbaforido, eu ia
á missa das sete a Sant'Anna, e á missa das nove da igreja de S. José, e
á missa do meio dia na ermida da Oliveirinha. Descansava um instante a
uma esquina, de ripanço debaixo do braço, chupando á pressa o cigarro:
depois voava ao Santissirno exposto na parochial de Santa Engracia, á
devoção do Terço no convento de Santa Joanna, á benção do Sacramento na
capella de Nossa Senhora ás Picôas, á novena das Chagas de Christo, na
sua igreja, com musica. Tomava então a tipoia do Pingalho, e ainda
visitava, ao acaso, de fugida, os Martyres e S. Domingos, a igreja do
convento do Desagravo e a igreja da Visitação das Selesias, a capella de
Monserrate ás Amoreiras e a Gloria ao Cardal da Graça, as Flamengas e as
Albertas, a Pena, o Rato, a Sé!
Á noite, em casa da Adelia, estava tão derreado, mono e molle ao canto
do sofá,--que ella atirava-me murros pelos hombros, e gritava, furiosa:
--Esperta, morcão!
Ai de mim! Um dia veio, porém, em que a Adelia, em vez de me chamar
morcão, quando, esfalfado no serviço do Senhor, eu mal podia ajudal-a
a desatacar o collete--passou, sempre que os meus labios insaciaveis se
collavam de mais ao seu collo, a empurrar-me, a chamar-me carraça...
Foi isto pelas alegres vesperas de Santo Antonio, ao apparecerem os
primeiros manjaricões, no quinto mez da minha devoção perfeita.
A Adelia começára a andar pensativa e distrahida. Tinha ás vezes, quando
eu lhe fallava, um modo de dizer «hein?», com o olhar incerto e
disperso, que era um tormento para o meu coração. Depois um dia deixou
de me fazer a caricia melhor, que eu mais appetecia--a penetrante e a
regaladora beijoca na orelha.
Sim, decerto permanecia terna... Ainda dobrava maternalmente o meu
paletot; ainda me chamava riquinho; ainda me acompanhava ao patamar em
camisa, dando, ao descollar do nosso abraço, esse lento suspiro que era
para mim a mais preciosa evidencia da sua paixão;--mas já me não
favorecia com a beijoquinha na orelha.
Quando eu entrava abrazado--encontrava-a por vestir, por pentear, molle,
estremunhada e com olheiras. Estendia-me a mãosinha desamoravel,
bocejava, colhia preguiçosamente a viola: e emquanto eu, a um canto,
chupando cigarros mudos, esperava que se abrisse a portinha envidraçada
da alcova que dava para o céo--a deshumana Adelia, estirada no sofá, de
chinelas cahidas, beliscava os bordões, murmurando, por entre longos
ais, cantigas de estranha saudade...
N'um arranco de ternura, eu ia ajoelhar-me á beira do seu peito. E lá
vinha logo a dura, a regelada palavra:
--Está quieto, carraça!
E recusava-me sempre o seu carinho. Dizia-me: «não posso, estou com
azia.» Dizia-me: «adeus, tenho a dôr na ilharga.»
Eu sacudia os joelhos, recolhia ao Campo de Sant'Anna--espoliado,
miserrimo, chorando na escuridão da minha alma pelos tempos ineffaveis
em que ella me chamava morcão!
Uma noite de julho, macia como um velludo preto e pespontada
d'estrellas, chegando mais cedo a casa d'ella, encontrei a portinha
aberta. O candieiro de petroline, pousado no soalho do patamar, enchia a
escada de luz;--e dei com a Adelia, em saia branca, fallando a um rapaz
de bigodinho louro, embrulhado pelintramente n'uma capa á hespanhola.
Ella empallideceu, elle encolheu--quando eu surgi, grande e barbudo, com
a minha bengala na mão. Depois a Adelia, sorrindo, sem perturbação, vera
e limpida, apresentou-me «seu sobrinho Adelino.» Era filho da mana
Ricardina, a que vivia em Vizeu, e irmão do Theodoriquinho... Tirando o
chapéo, apertei na palma larga e leal os dedos fugidios do snr. Adelino:
--Estimo muito conhecel-o, cavalheiro. Sua mamã, seu mano, bons?
N'essa noite a Adelia, resplandecente, tornou a chamar-me morcão,
restituiu-me o beijinho na orelha. E toda essa semana foi deliciosa como
a d'um noivado. O verão ardia; e começára na Conceição Velha a novena de
S. Joaquim. Eu sahia de casa á hora repousante em que se regam as ruas,
mais contente que os passaros chalrando nas arvores do campo de
Sant'Anna. Na salinha clara, com todas as cadeiras cobertas de fustão
branco, encontrava a minha Adelia de chambre, fresca de se ter lavado,
cheirando a agua de colonia, e aos lindos cravos vermelhos que a
toucavam; e depois das manhãs calorosas, nada havia mais idyllico, mais
dôce que as nossas merendas de morangos na cozinha, ao ar da janella,
contemplando bocadinhos verdes de quintaes e ceroulas humildes a seccar
em cordas... Ora uma tarde que assim nos apraziamos, ella pediu-me oito
libras.
Oito libras!... Descendo á noite a rua da Magdalena, eu ruminava quem
m'as poderia emprestar sem juro e rasgadamente. O bom Casimiro estava em
Torres, o prestante Rinchão estava em Paris... E pensava já no padre
Pinheiro (cujas dôres de rins eu lamentava sempre com affecto) quando
avistei a escapar-se, todo encolhido, todo surrateiro, d'uma d'essas
viellas impuras onde Venus Mercenaria arrasta os seus chinelos--o José
Justino, o nosso José Justino, o piedoso secretario da confraria de S.
José, o virtuosissimo tabellião da titi!...
Gritei logo: «boas noites, Justininho!» E regressei ao Campo de
Sant'Anna, tranquillo, gozando já a repenicada beijoca que me daria a
Délinha, quando eu risonho lhe estendesse na mão as oito rodellas
d'ouro. Ao outro dia cedo, corri ao cartorio do Justino, a S. Paulo,
contei-lhe a pranteada historia d'um condiscipulo meu, tisico,
miseravel, arquejando sobre uma enxerga, n'uma fetida casa d'hospedes,
ao pé do largo dos Caldas.
--É uma desgraça, Justino! Nem dinheiro tem para um caldinho... Eu é que
o ajudo: mas, que diabo, estou a tinir... Faço-lhe companhia, é o que
posso; leio-lhe orações, e Exercicios da vida christã. Hontem á noite
vinha eu de lá... E acredite você, Justino, que nem gósto d'andar por
aquellas ruas, tão tarde... Jesus, que ruas que indecencia, que
immoralidade!... Aquelles beccos d'escadinhas, hein?... Eu hontem bem
percebi que você ia horrorisado: eu tambem... De sorte que esta manhã
estava no oratorio da titi, a rezar pelo meu condiscipulo, a pedir a
Nosso Senhor que o ajudasse e que lhe désse algum dinheiro, e vai
pareceu-me ouvir uma voz lá de cima da cruz a dizer: «entende-te com o
Justino, falla ao nosso Justininho, elle que te dê oito libras para o
rapaz...» Fiquei tão agradecido a Nosso Senhor! De modo que aqui venho,
Justino, por ordem d'Elle.
O Justino escutava-me, branco como os seus collarinhos, dando estalinhos
tristes nos dedos;--depois, em silencio, estendeu-me uma a uma sobre a
carteira as oito moedas d'ouro. Assim eu servi a minha Adelia.
Fugaz foi porém a minha gloria!
D'ahi a dias estando no Montanha, regalado, a gozar uma carapinhada--o
criado veio avisar-me que uma mocinha trigueira e de chale, a snr.^a
Marianna, esperava por mim á esquina... Santo Deus! A Marianna era a
criada da Adelia. E corri, a tremer, certo de que a minha bem-amada
ficára soffrendo da sua abominavel dôr na sua branca ilharga. Pensei
mesmo em começar o Rosario das dezoito apparições de Nossa Senhora de
Lourdes, que a titi considera efficacissimo em casos de pontada ou de
touros tresmalhados...
--Ha novidade, Marianna?
Ella levou-me para dentro d'um pateo onde cheirava mal; e ahi, com os
olhos vermelhos, destraçando furiosamente o chale, rouca ainda da bulha
que tivera com a Adelia, rompeu a contar-me coisas torpes, execrandas,
sordidas. A Adelia enganava-me! O snr. Adelino não era sobrinho: era o
querido, o chulo. Apenas eu sahia, elle entrava: a Adelia
dependurava-se-lhe do pescoço, n'um delirio; e chamavam-me então o
carraça, o carola, o bode, vituperios mais negros, cuspindo sobre
o meu retrato. As oito libras tinham sido para o Adelino comprar fato de
verão; e ainda sobrára para irem á feira de Belem, em tipoia descoberta,
e de guitarra... A Adelia adorava-o com pieguice e com furor:
cortava-lhe os callos; e os suspiros da sua impaciencia, quando elle
tardava, lembravam o bramar das cervas, nos mattos quentes, em maio!...
Duvidava eu? Queria uma evidencia? Que fosse n'essa noite, tarde, depois
da uma hora, bater á portinha da Adelia!
Livido, apoiado ao muro, eu mal sabia se o cheiro que me suffocava vinha
do canto escuro do pateo--se das immundicies que borbulhavam da bocca da
Marianna, como d'um cano d'esgoto rebentado. Limpei o suor, murmurei, a
desfallecer:
--Está bom Marianna, obrigadinho, eu verei, vá com Deus...
Cheguei a casa tão sombrio, tão murcho, que a titi perguntou-me, com um
risinho, se eu «malhára abaixo da egoa.»
--Da egoa?... Não, titi, credo! Estive na igreja da Graça...
--É que vens tão enfiado, assim com as pernas molles... E então o Senhor
hoje estava bonito?
--Ai, titi, estava rico!... Mas não sei porquê, pareceu-me tão
tristinho, tão tristinho... Até eu disse ao padre Eugenio: «Ó Eugeninho,
o Senhor hoje tem desgosto!» E disse-me elle: «Que quer você, amigo? É
que vê por esse mundo tanta patifaria!» E olhe que vê, titi! Vê muita
ingratidão, muita falsidade, muita traição!
Rugia, enfurecido: e cerrára o punho como para o deixar cahir, punidor e
terrivel, sobre a vasta perfidia humana. Mas contive-me, abotoei devagar
a quinzena, recalquei um soluço.
--Pois é verdade, titi... Fez-me tanta impressão aquella tristeza do
Senhor que fiquei assim um bocado amarfanhado... E de mais a mais tenho
tido um desgosto: está um condiscipulo meu muito mal, coitadinho, a
espichar...
E outra vez, como diante do Justino (aproveitando reminiscencias do
Xavier e da rua da Fé), estirei a carcassa d'um condiscipulo sobre a
podridão d'uma enxerga. Disse as bacias de sangue, disse a falta de
caldos... Que miseria, titi, que miseria! E então um moço tão
respeitador das coisas santas, que escrevia tão bem na Nação!...
--Desgraças, murmurou a tia Patrocinio, meneando as agulhas da meia.
--É verdade, desgraças, titi. Ora como elle não tem familia e a gente da
casa é desleixada, nós os condiscipulos é que vamos por turnos
servir-lhe d'enfermeiros. Hoje toca-me a mim. E queria então que a titi
me désse licença para eu ficar fóra, até cerca das duas horas... Depois
vem outro rapaz, muito instruido, que é deputado.
A tia Patrocinio permittiu:--e até se offereceu para pedir ao patriarcha
S. José que fosse preparando ao meu condiscipulo uma morte somnolenta e
ditosa...
--Isso é que era um grande favor, titi! Elle chama-se Macieira... O
Macieira vesgo. É para S. José saber.
Toda a noite vagueei pela cidade, adormecida na molleza do luar de
julho. E por cada rua me acompanharam sempre, fluctuantes e
transparentes, duas figuras, uma em camisa, outra de capa á hespanhola,
enroscadas, beijando-se furiosamente--e só desligando os beiços pisados
para rirem alto de mim e para me chamarem carola.
Cheguei ao Rocio quando batia uma hora no relogio do Carmo. Ainda fumei
um cigarro, indeciso, por debaixo das arvores. Depois voltei os passos
para a casa da Adelia, vagaroso, e com medo. Na sua janella vi uma luz
enlanguecida e dormente. Agarrei a grossa aldraba da porta,--mas hesitei
com terror da certeza que vinha buscar, terminante e irreparavel... Meu
Deus! Talvez a Marianna, por vingança, calumniasse a minha Adelia! Ainda
na vespera ella me chamára riquinho, com tanto ardor! Não seria mais
sensato e mais proveitoso acreditar n'ella, tolerar-lhe um fugitivo
transporte pelo snr. Adelino, e continuar a receber egoistamente o meu
beijinho na orelha?
Mas então á idéa lacerante de que ella tambem beijava na orelha o snr.
Adelino, e que o snr. Adelino também dizia ai! ai! como
eu--assaltou-me o desejo ferino de a matar, com desprezo e a murros,
alli, n'esses degraus onde tantas vezes arrulhára a suavidade dos nossos
adeuses. E bati na porta com um punho bestial como se fosse já sobre o
seu fragil, ingrato peito.
Senti correr desabridamente o fecho da vidraça. Ella surgiu em camisa,
com os seus bellos cabellos revoltos:
--Quem é o bruto?
--Sou eu, abre.
Reconheceu-me--a luz dentro desappareceu; e foi como se aquella torcida
de candieiro, apagando-se, deixasse tambem a minha alma em escuridão,
fria para sempre e vazia. Senti-me regeladamente só, viuvo, sem
occupação e sem lar. Do meio da rua olhava as janellas negras, e
murmurava: «ai, que eu rebento!»
Outra vez a camisa da Adelia alvejou na varanda.
--Não posso abrir, que ceei tarde e estou com somno!
--Abre! gritei erguendo os braços desesperados. Abre ou nunca mais cá
volto!...
--Pois á fava, e recados á tia.
--Fica-te, bebeda!
Tendo-lhe atirado, como uma pedrada, este urro severo, desci a rua muito
teso, muito digno. Mas á esquina aluí de dôr, para cima d'um portal, a
soluçar, escoado em pranto, delido.
Pesada foi então ao meu coração a lenta melancolia dos dias d'estio...
Tendo contado á titi que andava a escrever dois artigos, piamente
destinados ao Almanach da Immaculada Conceição para 1878, encerrava-me
no quarto, toda a manhã, emquanto faiscavam ao sol as pedras da minha
varanda. Ahi, arrastando as chinelas sobre o soalho regado, remoía,
entre suspiros, recordações da Adelia; ou diante do espelho contemplava
o lugar macio da orelha em que ella costumava dar-me o beijo... Depois
sentia um ruido de vidraça--e o seu perfido, o seu affrontoso brado «á
fava!» Então, perdido, esguedelhado, machucava o travesseiro com os
murros que não podia vibrar ao peito magro do snr. Adelino.
Á tardinha, quando refrescava, ia espalhar para a Baixa. Mas cada
janella aberta ás aragens da tarde, cada cortina de cassa engommada me
lembrava a intimidade da alcovinha da Adelia; n'um simples par de meias,
esticado na vitrina de uma loja, eu revia com saudade a perfeição da sua
perna; tudo o que era luminoso me suggeria o seu olhar; e até o sorvete
de morango, no Martinho, me fazia repassar nos labios o adocicado e
gostoso sabor dos seus beijos.
Á noite, depois do chá, refugiava-me no oratorio, como n'uma fortaleza
de santidade, embebia os meus olhos no corpo de ouro de Jesus, pregado
na sua linda cruz de pau preto. Mas então o brilho fulvo do metal
precioso ia, pouco a pouco, embaciando, tomava uma alva côr de carne,
quente e tenra; a magreza de Messias triste, mostrando os ossos,
arredondava-se em fórmas divinamente cheias e bellas; por entre a corôa
d'espinhos, desenrolavam-se lascivos anneis de cabellos crespos e
negros; no peito, sobre as duas chagas, levantavam-se, rijos, direitos,
dois esplendidos seios de mulher, com um botãosinho de rosa na ponta;--e
era ella, a minha Adelia, que assim estava no alto da cruz, núa,
soberba, risonha, victoriosa, profanando o altar, com os braços abertos
para mim!
Eu não via n'isto uma tentação do Demonio--antes me parecia uma graça do
Senhor. Comecei mesmo a misturar aos textos das minhas rezas as queixas
do meu amor. O céo é talvez grato: e esses innumeraveis santos, a quem
eu prodigalisára Novenas e Coroinhas, desejariam talvez recompensar a
minha amabilidade restituindo-me as caricias que me roubára o homem
cruel da capa á hespanhola. Puz mais flôres sobre a commoda diante de
Nossa Senhora do Patrocinio; contei-lhe as angustias do meu coração. Por
traz do limpido vidro do seu caixilho, com os olhos baixos e magoados,
ella foi a confidente do tormento da minha carne; e todas as noites, em
ceroulas, antes de me deitar, eu lhe segredava, com ardor:
--Ó minha querida Senhora do Patrocinio, faze que a Adelinha goste outra
vez de mim!
Depois utilisei o valimento da titi com os santos seus amigos--o
amorosissimo e perdoador S. José, S. Luiz Gonzaga, tão benevolo para a
juventude. Pedia-lhe que fizesse uma Petição por certa necessidade
minha, secreta e toda pura. Ella accedia, com alacridade; e eu,
espreitando pelo reposteiro do oratorio, regalava-me de vêr a rigida
senhora, de joelhos, de contas na mão, em supplicas aos Patriarchas
castissimos para que a Adelia me désse outra vez a beijoquinha na
orelha.
Uma noite, cedo, foi experimentar se o céo escutára tão valiosas preces.
Cheguei á porta da Adelia; e bati, tremendo todo, uma argoladinha
humilde. O snr. Adelino assomou á janella, em mangas de camisa.
--Sou eu, snr. Adelino, murmurei abjectamente e tirando o chapéo. Queria
fallar á Adeliasinha.
Elle rosnou para dentro, para a alcova, o meu nome. Creio mesmo que
disse o carola. E lá do fundo, d'entre os cortinados, onde eu a
presentia toda desalinhada e formosa, a minha Adelia gritou com furor:
--Atira-lhe para cima dos lombos o balde da agua suja!
Fugi.
* * * * *
No fim de setembro, o Rinchão chegou de Paris: e um domingo, á
noitinha, á volta da Novena de S. Caetano, entrando no Martinho,
encontrei-o, rodeado de rapazes, contando ruidosamente os seus feitos
d'amor e de gentil audacia em Paris. Tristonho, puxei um banco e fiquei
a ouvir o Rinchão. Com uma ferradura de rubis na gravata, o monoculo
pendente d'uma fita larga, uma rosa amarella no peito, o Rinchão
impressionava, quando por entre o fumo do charuto esboçava traços do seu
prestigio: «Uma noite no Caffé de la Paix, estando eu a cear com a Cora,
com a Valtesse, e com um rapaz muito chic, um principe...» O que o
Rinchão tinha visto! o que o Rinchão tinha gozado! Uma condessa
italiana, delirante, parenta do Papa, e chamada Popotte, amára-o,
levára-o aos Campos-Elyseos na sua victoria--cujo velho brazão eram dois
chavelhos encruzados. Jantára em restaurantes onde a luz vinha de
serpentinas d'ouro, e os criados, macilentos e graves, lhe chamavam
respeitosamente Mr. le Comte. E o Acazar, com festões de gaz entre
as arvores, e a Paulina cantando, de braços nús, o Chouriço de
Marselha--revelára-lhe a verdade, a grandeza da civilisação.
--Viste Victor Hugo? perguntou um rapaz de lunetas pretas, que roía as
unhas.
--Não, nunca andava cá na roda chic!
Toda essa semana, então, a idéa de vêr Paris brilhou incessantemente no
meu espirito, tentadora e cheia de suaves promessas... E era menos o
appetite d'esses gozos do Orgulho e da Carne com que se abarrotára o
Rinchão, que a anciedade de deixar Lisboa, onde igrejas e lojas, claro
rio e claro céo, só me lembravam a Adelia, o homem amargo de capa á
hespanhola, o beijo na orelha perdido para sempre... Ah! se a titi
abrisse a sua bolsa de sêda verde, me deixasse mergulhar dentro as mãos,
colher ouro, e partir para Paris!...
Mas, para a snr.^a D. Patrocinio, Paris era uma região ascorosa, cheia
de mentira, cheia de gula--onde um povo sem santos, com as mãos
maculadas do sangue dos seus arcebispos, está perpetuamente, ou brilhe o
sol, ou luza o gaz, commettendo uma relaxação. Como ousaria eu mostrar
á titi o desejo immodesto de visitar esse lugar de sujidade e de treva
moral?...
Logo no domingo porém, jantando no Campo de Sant'Anna os amigos
dilectos, aconteceu fallar-se, ao cozido, d'um sabio condiscipulo do
padre Casimiro que recentemente deixára a quietação da sua cella no
Varatojo, para ir esposar, entre foguetes, a trabalhosa Sé de Lamego. O
nosso modesto Casimiro não comprehendia esta cubiça d'uma mitra,
cravejada de pedras vãs: para elle a plenitude d'uma vida ecclesiastica
era estar assim aos sessenta annos, são e sereno, sem saudades e sem
temores, comendo o arrozinho do forno da snr.^a D. Patrocinio das
Neves...
--Porque deixe-me dizer-lhe, minha respeitavel senhora, que este seu
arroz está um primor!... E a ambição de ter sempre um arroz d'estes, e
amigos que o apreciem, parece-me a mais legitima e a melhor para uma
alma justa...
E assim se veio a discursar das acertadas ambições que, sem aggravo do
Senhor, cada um podia nutrir no seu coração. A do tabellião Justino era
uma quintasinha no Minho, com roseiras e com parreiras, onde elle
pudesse acabar a velhice, em mangas de camisa, e quietinho.
--Olhe, Justino, disse a titi, uma coisa que lhe havia de fazer falta
era a sua missa na Conceição Velha... Quando a gente se acostuma a uma
missinha, não ha outra que console... A mim, se me tirassem a de
Sant'Anna, parece-me que começava a definhar...
Era o padre Pinheiro que a celebrava; a titi, enternecida, collocou-lhe
no prato outra aza de gallinha;--e padre Pinheiro revelou tambem a
ambição que o pungia. Era elevada e santa. Queria vêr o Papa restaurado
n'esse throno forte e fecundo em que resplandecera Leão X...
--Se ao menos houvesse mais caridade com elle! exclamou a titi. Mas o
Santissimo Padre, o vigariosinho de Nosso Senhor, assim n'uma masmorra,
em farrapos, sobre palha... É de Caipházes, é de judeus!
Bebeu um gole da sua agua morna, e recolheu-se ao retiro da sua alma--a
rezar a Ave-Maria que sempre offertava pela saude do Pontifice e pelo
termo do seu captiveiro.
O dr. Margaride consolou-a. Não acreditava que o Pontifice dormisse
sobre palhas. Viajantes esclarecidos afiançavam-lhe até que o Santo
Padre, querendo, podia ter carruagem.
--Não é tudo; está longe de ser tudo o que compete a quem usa a tiára;
mas uma carruagem, minha senhora, é uma grandissima commodidade...
Então o nosso Casimiro, risonho, desejou saber (já que todos patenteavam
as suas ambições) qual era a do douto, do eminente dr. Margaride.
--Diga lá a sua, dr. Margaride, diga lá a sua! clamaram todos, com
affecto.
Elle sorria, grave.
--Deixe-me v. exc.^a primeiro, D. Patrocinio, minha senhora, servir-me
d'essa lingua guizada, que marcha para nós e que me parece preciosa.
Depois de fornecido, o veneravel magistrado confessou que appetecia ser
Par do Reino. Não por alarde de honras, nem pelo luxo da farda; mas para
defender o principio sacro da authoridade...
--Só por isto, acrescentou com energia. Porque desejava tambem, antes de
morrer, poder dar, se v. exc.^a, D. Patrocinio, me permitte a expressão,
uma cacheirada mortal no atheismo e na anarchia. E dava-lh'a!
Todos declararam fervorosamente o dr. Margaride digno d'esses fastigios
sociaes. Elle agradeceu, seriissimo. Depois volveu para mim a face
magestosa e livida:
--E o nosso Theodorico? O nosso Theodorico ainda não nos disse qual era
a sua ambição.
Córei: e Paris logo rebrilhou ao fundo do meu desejo, com as suas
serpentinas de ouro, as suas condessas primas dos Papas, as espumas do
seu champagne--fascinante, embriagante, e adormentando toda a dôr... Mas
baixei os olhos; e affirmei que só aspirava a rezar as minhas corôas, ao
lado da titi, com proveito e com descanso...
O dr. Margaride porém pousára o talher, insistia. Não lhe parecia um
desapego de Deus, nem uma ingratidão com a titi, que eu, intelligente,
saudavel, bom cavalleiro e bacharel, nutrisse uma honesta cubiça...
--Nutro! exclamei então decidido como aquelle que arremessa um dardo.
Nutro, dr. Margaride. Gostava muito de vêr Paris.
--Cruzes! gritou a snr.^a D. Patrocinio, horrorisada. Ir a Paris!...
--Para vêr as igrejas, titi!
--Não é necessario ir tão longe para vêr bonitas igrejas, replicou ella,
rispidamente. E lá em festas com orgão, e um Santissimo armado com luxo,
e uma rica procissão na rua, e boas vozes, e respeito, e imagens de dar
gosto, ninguem bate cá os nossos portuguezes!...
Calei-me, esmagado. E o esclarecido dr. Margaride applaudiu o
patriotismo ecclesiastico da titi. Decerto, não era n'uma republica sem
Deus, que se deviam procurar as magnificencias do culto...
--Não, minha senhora, lá para saborear coisas grandiosas da nossa santa
religião, se eu tivesse vagares, não era a Paris que ia... Sabe v.
exc.^a onde eu ia, snr.^a D. Maria do Patrocinio?
--O nosso doutor, lembrou o padre Pinheiro, corria direito a Roma...
--Upa, padre Pinheiro! Upa, minha cara senhora!
Upa? Nem o bom Pinheiro, nem a titi comprehendiam o que houvesse de
superior a Roma pontifical! O dr. Margaride então ergueu solemnemente as
sobrancelhas, densas e negras como ebano.
--Ia á Terra Santa, D. Patrocinio! Ia á Palestina, minha senhora! Ia vêr
Jerusalem e o Jordão! Queria eu tambem estar um momento, de pé, sobre o
Golgotha, como Chateaubriand, com o meu chapéo na mão, a meditar, a
embeber-me, a dizer «salvè!» E havia de trazer apontamentos, minha
senhora, havia de publicar impressões historicas. Ora ahi tem v. exc.^a
onde eu ia... Ia a Sião!
Servira-se o lombo assado; e houve, por sobre os pratos, um recolhimento
reverente a esta evocação da terra sagrada onde padeceu o Senhor. Eu
parecia-me vêr lá muito longe, na Arabia, ao fim de arquejantes dias de
jornada sobre o dorso d'um camêlo, um montão de ruinas em torno d'uma
cruz; um rio sinistro corre ao lado entre oliveiras; o céo arqueia-se
mudo e triste como a abobada d'um tumulo. Assim devia ser Jerusalem.
--Linda viagem! murmurou o nosso Casimiro, pensativo.
--Sem contar, rosnou padre Pinheiro, baixo e como ciciando uma oração,
que Nosso Senhor Jesus Christo vê com grande apreço, e muito agradece,
essas visitas ao seu Santo Sepulchro.
--Até quem lá vai, disse o Justino, tem perdão de peccados. Não é
verdade, Pinheiro? Eu assim li no Panorama... Vem-se de lá limpinho de
tudo!
Padre Pinheiro (tendo recusado, com mágoa, a couve-flôr, que considerava
indigesta) deu esclarecimentos. Quem ia á Terra Santa, n'uma devota
peregrinação, recebia sobre o marmore do Santo Sepulchro, das mãos do
Patriarcha de Jerusalem, e pagando os rituaes emolumentos, as suas
Indulgencias Plenarias...
--Não só para si, segundo tenho ouvido dizer, acrescentou o instruido
ecclesiastico, mas para uma pessoa querida de familia, piedosa, e
comprovadamente impedida de fazer a jornada... Pagando, já se vê,
emolumentos dobrados.
--Por exemplo! exclamou o dr. Margaride inspirado, batendo-me com força
nas costas. Assim para uma boa titi, uma titi adorada, uma titi que tem
sido um anjo, toda virtude, toda generosidade!...
--Pagando, já se vê, insistiu padre Pinheiro, os emolumentos dobrados!
A titi não dizia nada; os seus oculos, girando do Sacerdote para o
Magistrado, pareciam estranhamente dilatados, e brilhando mais com o
clarão interior d'uma idéa: um pouco de sangue subira á sua face
esverdinhada. A Vicencia offereceu o arroz dôce. Nós rezamos as graças.
Mais tarde no meu quarto, despindo-me, senti-me triste, infinitamente.
Nunca a titi me deixaria visitar a terra immunda de França: e aqui
ficaria enclausurado n'esta Lisboa onde tudo me era tortura, e as mais
rumorosas ruas me aggravavam o ermo do meu coração, e até a pureza do
fino céo de estio me recordava a torva perfidia d'essa que fôra para mim
estrella e Rainha da Graça... Depois, n'esse dia, ao jantar, a titi
parecera-me mais rija, solida ainda, duradoura, e por longos annos dona
da bolsa de sêda verde, dos predios e dos contos do commendador G.
Godinho... Ai de mim! Quanto tempo mais teria de rezar com a odiosa
velha o fastiento terço, de beijar o pé do Senhor dos Passos, sujo de
tanta bocca fidalga, de palmilhar novenas, e de magoar os joelhos diante
do corpo d'um Deus, magro e cheio de feridas? Oh vida entre todas
amargurosa! E já não tinha, para me consolar do enfadonho serviço de
Jesus, os macios braços da Adelia...
* * * * *
De manhã, apparelhada a egoa, e já d'esporas, fui saber se minha titi
tinha algum pio recado para S. Roque, por ser esse seu milagroso dia. Na
saleta votada ás glorias de S. José, a titi, ao canto do sofá, com o
chale de Tonkin cahido dos hombros, examinava o seu grande caderno de
contas, aberto sobre os joelhos; e, defronte, calado, com as mãos
cruzadas atraz das costas, o bom Casimiro sorria pensativamente ás
flôres do tapete.
--Ora venha cá, venha cá! disse elle, mal eu assomei curvando o
espinhaço. Ouça lá a novidade! Que você é uma joia, respeitador de
velhos, e tudo merece de Deus e da senhora sua tia. Chegue-se cá, venha
de lá esse abraço!
Sorri, inquieto. A titi enrolava o seu caderno.
--Theodorico! começou ella, cruzando os braços, impertigada. Theodorico!
tenho estado aqui a consultar com o snr. padre Casimiro. E estou
decidida a que alguem que me pertença, e que seja do meu sangue, vá
fazer por minha intenção uma peregrinação á Terra Santa...
--Hein, felizão! murmurou Casimiro, resplandecendo.
--Assim, proseguiu a titi, está entendido e ficas sabendo que vaes a
Jerusalem e a todos os divinos lugares. Escusas de me agradecer, é para
meu gosto, e para honrar o tumulo de Jesus Christo, já que eu lá não
posso ir... Como, louvado seja Nosso Senhor, não me faltam os meios, has
de fazer a viagem com todas as commodidades; e para não estar com mais
duvidas, e pela pressa d'agradar a Nosso Senhor, ainda has de partir
n'este mez... Bem, agora vai, que eu preciso conversar com o snr. padre
Casimiro. Obrigado, não quero nada para o snr. S. Roque: já me entendi
com elle.
Balbuciei: «Muito agradecido, titi; adeusinho, padre Casimiro.» E segui
pelo corredor, atordoado.
No meu quarto corri ao espelho a contemplar, pasmado, este rosto e estas
barbas, onde em breve pousaria o pó do Jerusalem... Depois, cahi sobre o
leito.
--Olha que tremenda espiga!
Ir a Jerusalem! E onde era Jerusalem? Recorri ao bahú que continha os
meus compendios e a minha roupa velha; tirei o Atlas, e com elle aberto
sobre a commoda, diante da Senhora do Patrocinio, comecei a procurar
Jerusalem lá para o lado onde vivem os Infieis, ondulam as escuras
caravanas, e uma pouca d'agua n'um poço é como um dom precioso do
Senhor.
O meu dedo errante sentia já o cansaço d'uma longa jornada: e parei á
beira tortuosa d'um rio que devia ser o devoto Jordão. Era o Danubio. E
de repente o nome de Jerusalem surgiu, negro, n'uma vasta solidão
branca, sem nomes, sem linhas, toda de arêas, nua, junto ao mar. Alli
estava Jerusalem. Meu Deus! Que remoto, que ermo, que triste!
Mas então comecei a considerar que, para chegar a esse sólo de
penitencia, tinha d'atravessar regiões amaveis, femininas e cheias de
festa. Era primeiro essa bella Andaluzia, terra de Maria Santissima,
perfumada de flôr de laranjeira, onde as mulheres só com metter dois
cravos no cabello, e traçando um chale escarlate, amansam o coração mais
rebelde, bendita sêa su gracia! Era adiante Napoles--e as suas ruas
escuras, quentes, com retabulos da Virgem, e cheirando a mulher, como os
corredores d'um lupanar. Era depois mais longe ainda a Grecia: desde a
aula de Rhetorica ella apparecera-me sempre como um bosque sacro de
loureiros onde alvejam frontões de templos, e, nos lugares de sombra em
que arrulham as pombas, Venus de repente surge, côr de luz e côr de
rosa, offerecendo a todo o labio, ou bestial ou divino, o mimo dos seus
seios immortaes. Venus já não vivia na Grecia; mas as mulheres tinham
conservado lá o esplendor da sua fórma e o encanto do seu impudor...
Jesus! o que eu podia gozar! Um clarão sulcou-me a alma. E gritei, com
um murro sobre o Atlas, que fez estremecer a castissima Senhora do
Patrocinio e todas as estrellas da sua corôa:
--Caramba, vou fartar o bandulho!
Sim, fartal-o! E mesmo, receando que a titi, por avareza do seu ouro ou
desconfiança da minha piedade, renunciasse á idéa d'esta peregrinação
tão promettedora de gozos--resolvi ligal-a supernaturalmente por uma
ordem divina. Fui ao oratorio; desmanchei o cabello, como se por entre
elle tivesse passado um sopro celeste; e corri ao quarto da titi,
esgazeado, com os braços a tremer no ar.
--Ó titi! pois não quer saber? Estava agora no oratorio, a rezar de
satisfação, e vai de repente pareceu-me ouvir a voz de Nosso Senhor, de
cima da cruz, a dizer-me baixinho, sem se mexer: «Fazes bem, Theodorico,
fazes bem em ir visitar o meu Santo Sepulchro... E estou muito contente
com tua tia... Tua tia é das minhas!...»
Ella juntou as mãos, n'um fogoso transporte d'amor:
--Louvado seja o seu santissimo nome!... Pois disse isso? Ai, era bem
capaz, que Nosso Senhor sabe que é para o honrar que eu lá te mando...
Louvado seja outra vez o seu santissimo nome! Louvado seja em Terra e
Céo! Anda, filho, vai, reza-lhe... Não te fartes, não te fartes!
Eu ia, murmurando uma Ave-Maria. Ella correu ainda á porta, n'uma
effusão de sympathia:
--E olha, Theodorico, vê lá a respeito de roupa branca... Talvez te
sejam necessarias mais ceroulas... Encommenda, filho, encommenda, que
graças a Nossa Senhora do Rosario tenho posses, e quero que vás com
decencia e te apresentes bem lá na sepulturasinha de Deus!...
Encommendei: e, tendo comprado um Guia do Oriente e um capacete de
cortiça, informei-me, sobre o modo mais deleitoso de chegar a Jerusalem,
com Benjamim Sarrosa & C.^a, judeu sagaz, que ia todos os annos, de
turbante, comprar bois a Marrocos. Benjamim marcou-me, miudamente, n'um
papel, o meu grandioso itinerario. Embarcaria no Malaga, vapor da casa
Jadley que, por Gibraltar, e depois por Malta, me levaria, n'um mar
sempre azul, á velha terra do Egypto. Ahi um repouso sensual na festiva
Alexandria. Depois no paquete do Levante, que sobe a costa religiosa da
Syria, aportaria a Jaffa, a de verdejantes pomares; e de lá, seguindo
uma estrada macadamisada, ao chouto d'uma egoa dôce, veria, ao fim d'um
dia e ao fim d'uma noite, surgirem, negras entre collinas tristes, as
muralhas de Jerusalem!
--Diabo, Benjamim... Parece-me muito mar, muito paquete. Então nem um
bocadinho de Hespanha? Ó menino, olhe que eu quero refastelar-me.
--Refastela-se em Alexandria. Tem lá tudo. Tem o bilhar, tem a tipoia,
tem a batota, tem a mulherinha... Tudo do bom. É lá que você se
refastela!
No emtanto, já no Montanha e na tabacaria do Brito se fallava da minha
santa empresa. Uma manhã, li, escarlate d'orgulho, no Jornal das
Novidades estas linhas honorificas: «Parte brevemente a visitar
Jerusalem, e todos os sacros lugares em que padeceu por nós o Redemptor,
o nosso amigo Theodorico Raposo, sobrinho da exc.^{ma} D. Patrocinio das
Neves, opulenla proprietaria, e modelo de virtudes christãs. Boa
viagem!» A titi, desvanecida, guardou o jornal no oratorio, debaixo da
peanha de S. José: e eu jubilei, por imaginar o despeito da Adelia
(leitora fiel do Jornal) ao vêr-me assim abalar desprendido d'ella,
atestado d'ouro, para essas terras musulmanas--onde a cada passo se topa
um serralho, mudo e cheirando a rosa entre sycomoros...
A vespera da partida, na sala dos damascos, teve elevação e solemnidade.
O Justino contemplava-me--como se contempla uma figura historica.
--O nosso Theodorico... Que viagem!... O que se vai fallar n'isto!
E padre Pinheiro murmurava com unção:
--Foi uma inspiração do Senhor! E que bem que lhe ha de fazer á saude!
Depois mostrei o meu capacete de cortiça. Todos o admiraram. O nosso
Casimiro, todavia, depois de coçar pensativamente o queixo, observou que
me daria talvez mais seriedade um chapéo alto...
A titi acudiu, afflicta:
--É o que eu lhe disse! Acho de pouca ceremonia, para a cidade em que
morreu Nosso Senhor...
--Ó titi, mas já lhe expliquei! Isto é só para o deserto!... Em
Jerusalem, está claro, e em todos aquelles santos lugares, ando de
chapéo alto...
--Sempre é mais de cavalheiro, affirmou o dr. Margaride.
Padre Pinheiro quiz saber, solicitamente, se eu ia prevenido com
remedios para o caso d'um contratempo intestinal n'esses descampados
biblicos...
--Levo tudo. O Benjamim deu-me a lista... Até linhaça, até arnica!...
O pachorrento relogio do corredor começou a gemer as dez; eu devia
madrugar; e o dr. Margaride, commovido, agasalhava já o pescoço no seu
lenço de sêda. Então, antes dos abraços, perguntei aos meus leaes amigos
que «lembrançasinha» desejavam d'essas terras remotas onde vivera o
Senhor. Padre Pinheiro queria um frasquinho d'agua do Jordão. Justino
(que já me pedira no vão da janella um pacote de tabaco turco) diante da
titi só appetecia um raminho de oliveira, do monte Olivete. O dr.
Margaride contentava-se com uma boa photographia do sepulchro de Jesus
Christo, para encaxilhar...
Com a carteira aberta, depois de alistar estas piedosas
imcumbencias--voltei-me para a titi, risonho, carinhoso, humilde...
--Cá por mim, disse ella do meio do sofá como d'um altar, tesa nos seus
setins de domingo, o que desejo é que faças essa viagem com toda a
devoção, sem deixar pedra por beijar, nem perder novena, nem ficar
lugarzinho em que não rezes ou o terço ou a corôa... Além d'isso, tambem
estimo que tenhas saude.
Eu ia depôr na sua mão, brilhante de anneis, um beijo gratissimo. Ella
deteve-me--mais aprumada e secca:
--Até aqui tens sido apropositado, não tens faltado aos preceitos, nem
te tens dado a relaxações... Por isso te vaes regalar de vêr as
oliveiras onde Nosso Senhor suou sangue, e de beber no Jordãosinho...
Mas se eu soubesse que n'esta passeata tinhas tido maus pensamentos, e
praticado uma relaxação, ou andado atraz de saias, fica certo que,
apesar de ser a unica pessoa do meu sangue, e teres visitado Jerusalem,
e gozar indulgencias, havias de ir para a rua, sem uma côdea, como um
cão!
Curvei a cabeça, apavorado. E a titi, depois de roçar o lenço de rendas
pelos beiços sumidos, proseguiu com mais authoridade, e uma emoção
crescente que lhe punha, sob o corpete raso, como o fugitivo arfar d'um
peito humano:
--E agora quero dizer-te para teu governo uma só coisa!...
Todos de pé, e reverentes, logo percebemos que a titi se preparava a
proferir uma palavra suprema. N'essa hora de separação, rodeada dos seus
sacerdotes, rodeada dos seus magistrados, D. Patrocinio das Neves ia
decerto revelar qual fôra o seu intimo motivo, em me mandar, como
sobrinho e como romeiro, á cidade de Jerusalem. Eu ia saber emfim, e tão
indubitavelmente como se ella m'o escrevesse n'um pergaminho, qual
deveria ser o mais precioso dos meus cuidados, velando ou dormindo, nas
terras do Evangelho!
--Aqui está! declarou a titi. Se entendes que mereço alguma coisa pelo
que tenho feito por ti desde que morreu tua mãi, já educando-te, já
vestindo-te, já dando-te egoa para passeares, já cuidando da tua alma,
então traze-me d'esses santos lugares uma santa reliquia, uma reliquia
milagrosa que eu guarde, com que me fique sempre apegando nas minhas
afflicções e que cure as minhas doenças.
E pela vez primeira, depois de cincoenta annos de aridez, uma lagrima
breve escorregou no carão da titi, por sob os seus oculos sombrios.
O dr. Margaride rompeu para mim, arrebatadamente:
--Theodorico, que amor que lhe tem a titi! Rebusque essas ruinas,
esquadrinhe esses sepulcros! Traga uma reliquia á titi!
Eu bradei, exaltado:
--Titi, palavra de Raposão que lhe hei de trazer uma tremenda reliquia!
Pela severa sala de damascos transbordou, ruidosa e tocante, a commoção
dos nossos corações. Eu achei me com os beiços do Justino, ainda molles
da torrada, collados á minha barba...
Cedo, na manhã de domingo, 6 de setembro e dia de Santa Libania, fui
bater, devagar, ao quarto da titi, ainda adormecida no seu leito
castissimo. Senti, por sobre o tapete, aproximar-se o som molle dos seus
chinelos. Entreabriu pudicamente a porta; e, decerto em camisa,
estendeu-me, através da fenda, a sua mão escarnada, livida, cheirando a
rapé. Appeteceu-me mordel-a; depuz n'ella um beijo baboso; a titi
murmurou:
--Adeus, menino... Dá muitas saudades ao Senhor!
Desci a escadaria, já de capacete, sobraçando o meu Guia do Oriente.
Atraz a Vicencia soluçava.
A minha mala nova de couro, o meu repleto sacco de lona enchiam o coupé
do Pingalho. Ainda as andorinhas retardadas cantavam no beiral dos
telhados; na capella de Sant'Anna tocava para a missa. E um raio de sol,
vindo do Oriente, vindo lá da Palestina ao meu encontro, banhou-me a
face, acolhedor e risonho, como uma caricia do Senhor.
Fechei a tipoia, estirei-me, gritei: «Larga, Pingalho!»
E, romeiro abastado, soprando á brisa o fumo do meu cigarro--assim
deixei o portão de minha tia, em caminho para Jerusalem!
The Project Gutenberg eBook of A Relíquia
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Title: A Relíquia
Author: Eça de Queirós
Release date: January 14, 2006 [eBook #17515]
Language: Portuguese
Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)
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Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was
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Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)
A RELIQUIA
*A Reliquia*
Decidi compôr, nos vagares d'este verão, na minha quinta do Mosteiro
(antigo solar dos condes de Landoso) as memorias da minha Vida--que
n'este seculo, tão consumido pelas incertezas da Intelligencia e tão
angustiado pelos tormentos do Dinheiro, encerra, penso eu e pensa meu
cunhado Chrispim, uma lição lucida e forte.
Em 1875, nas vesperas de Santo Antonio, uma desillusão de incomparavel
amargura abalou o meu sêr: por esse tempo minha tia D. Patrocinio das
Neves mandou-me do Campo de Sant'Anna, onde moravamos, em romagem a
Jerusalem: dentro d'essas santas muralhas, n'um dia abrazado do mez de
Nizam, sendo Poncius Pilatus procurador da Judêa, Elius Lamma legado
imperial da Syria e J. Kaiapha Summo Pontifice testemunhei,
miraculosamente, escandalosos successos: depois voltei--e uma grande
mudança se fez nos meus bens e na minha moral.
São estes casos--espaçados e altos n'uma existencia de bacharel como, em
campo de herva ceifada, fortes e ramalhosos sobreiros cheios de sol e
murmurio--que quero traçar, com sobriedade e com sinceridade, emquanto
no meu telhado voam as andorinhas, e as moitas de cravos vermelhos
perfumam o meu pomar.
Esta jornada á terra do Egypto e á Palestina permanecerá sempre como a
gloria superior da minha carreira; e bem desejaria que d'ella ficasse
nas Lettras, para a Posteridade, um monumento airoso e macisso. Mas
hoje, escrevendo por motivos peculiarmente espirituaes, pretendi que as
paginas intimas em que a relembro se não assemelhassem a um Guia
Pittoresco do Oriente. Por isso (apesar das solicitações da vaidade)
supprimi n'este manuscripto succulentas, resplandecentes narrativas de
Ruinas e de Costumes...
De resto esse paiz do Evangelho, que tanto fascina a humanidade
sensivel, é bem menos interessante que o meu sêcco e paterno Alemtejo:
nem me parece que as terras favorecidas por uma presença Messianica
ganhem jámais em graça ou esplendor. Nunca me foi dado percorrer os
Lugares Santos da India em que o Budha viveu--arvoredos de Migadaia,
outeiros de Veluvana, ou esse dôce valle de Rajagria por onde se
alongavam os olhos adoraveis do Mestre perfeito quando um fogo rebentou
nos juncaes, e Elle ensinou, em singela parabola, como a Ignorancia é
uma fogueira que devora o homem--alimentada pelas enganosas sensações de
Vida que os sentidos recebem das enganosas apparencias do Mundo. Tambem
não visitei a caverna d'Hira, nem os devotos areaes entre Meca e Medina
que tantas vezes trilhou Mahomet, o Propheta Excellente, lento e
pensativo sobre o seu dromedario. Mas, desde as figueiras de Bethania
até ás aguas caladas de Galilêa, conheço bem os sitios onde habitou esse
outro Intermediario divino, cheio de enternecimento e de sonhos, a quem
chamamos Jesus-Nosso-Senhor:--e só n'elles achei bruteza, seccura,
sordidez, soledade e entulho.
Jerusalem é uma villa turca, com viellas andrajosas, acaçapada entre
muralhas côr de lôdo, e fedendo ao sol sob o badalar de sinos tristes.
O Jordão, fio d'agua barrento e pêco que se arrasta entre areaes, nem
póde ser comparado a esse claro e suave Lima que lá baixo, ao fundo do
Mosteiro, banha as raizes dos meus amieiros: e todavia vêde! estas
meigas aguas portuguezas não correram jámais entre os joelhos d'um
Messias, nem jámais as roçaram as azas dos anjos, armados e rutilantes,
trazendo do céo á terra as ameaças do Altissimo!
Entretanto como ha espiritos insaciaveis que, lendo d'uma jornada pelas
terras da Escriptura, anhelam conhecer desde o tamanho das pedras até ao
preço da cerveja--eu recommendo a obra copiosa e luminosa do meu
companheiro de romagem, o allemão Topsius, doutor pela Universidade de
Bonn e membro do Instituto Imperial de Excavações Historicas. São sete
volumes in-quarto, atochados, impressos em Leipzig, com este titulo
fino e profundo--Jerusalem Passeada e Commentada.
Em cada pagina d'esse solido Itinerario o douto Topsius falla de mim,
com admiração e com saudade. Denomina-me sempre o illustre fidalgo
lusitano; e a fidalguia do seu camarada, que elle faz remontar aos
Barcas, enche manifestamente o erudito plebeu de delicioso orgulho. Além
d'isso o esclarecido Topsius aproveita-me, através d'esses repletos
volumes, para pendurar ficticiamente, nos meus labios e no meu craneo,
dizeres e juizos ensopados de beata e babosa credulidade--que elle logo
rebate e derroca com sagacidade e facundia! Diz, por exemplo:--«Diante
de tal ruina, do tempo da Cruzada de Godofredo, o illustre fidalgo
lusitano pretendia que Nosso Senhor, indo um dia com a Santa
Veronica...»--E logo alastra a tremenda, turgida argumentação com que me
deliu. Como porém as arengas que me attribue não são inferiores em sabio
chorume e arrogancia theologica ás de Bossuet, eu não denunciei n'uma
nota á Gazeta de Colonia--por que tortuoso artificio a afiada razão da
Germania se enfeita assim de triumphos sobre a romba fé do Meio-Dia.
Ha porém um ponto de Jerusalem Passeada que não posso deixar sem
energica contestação. É quando o doutissimo Topsius allude a dois
embrulhos de papel, que me acompanharam e me occuparam, na minha
peregrinação, desde as viellas de Alexandria até ás quebradas do
Carmello. N'aquella fórma rotunda que caracterisa a sua eloquencia
universitaria, o dr. Topsius diz:--«O illustre fidalgo lusitano
transportava alli restos dos seus antepassados, recolhidos por elle,
antes de deixar o sólo sacro da patria, no seu velho solar torreado!...»
Maneira de dizer singularmente fallaz e censuravel! Porque faz suppôr á
Allemanha erudita que eu viajava pelas terras do Evangelho--trazendo
embrulhados n'um papel pardo os ossos dos meus avós!
Nenhuma outra imputação me poderia tanto desaprazer e desconvir. Não por
me denunciar á Egreja como um profanador leviano de sepulturas
domesticas: menos me pezam a mim, commendador e proprietario, as
fulminações da Egreja--que as folhas sêccas que ás vezes cahem sobre o
meu guardasol de cima d'um ramo morto: nem realmente a Egreja, depois de
ter embolsado os seus emolumentos por enterrar um mólho d'ossos, se
importa que elles para sempre jazam resguardados sob a rigida paz d'um
marmore eterno, ou que andem chocalhados nas dobras molles d'um papel
pardo. Mas a afirmação de Topsius desacredita-me perante a Burguezia
Liberal:--e só da Burguezia Liberal, omnipresente e omnipotente, se
alcançam, n'estes tempos de semitismo e de capitalismo, as coisas boas
da vida, desde os empregos nos bancos até ás commendas da Conceição. Eu
tenho filhos, tenho ambições. Ora a Burguezia Liberal aprecia, recolhe,
assimila com alacridade um cavalheiro ornado de avoengos e solares: é o
vinho precioso e velho que vai apurar o vinho novo e crú: mas com razão
detesta o bacharel, filho d'algo, que passeie por diante d'ella,
enfunado e têso, com as mãos carregadas de ossos de antepassados--como
um sarcasmo mudo aos antepassados e aos ossos que a ella lhe faltam.
Por isso intímo o meu douto Topsius (que com seus penetrantes oculos viu
formar os meus embrulhos, já na terra do Egypto, já na terra de Canaan)
a que na edição segunda de Jerusalem Passeada, sacudindo pudicos
escrupulos de Academico e estreitos desdens de Philosopho, divulgue á
Allemanha scientifica e á Allemanha sentimental qual era o recheio que
continham esses papeis pardos--tão francamente como eu o revelo aos meus
concidadãos n'estas paginas de repouso e de ferias, onde a Realidade
sempre vive, ora embaraçada e tropeçando nas pesadas roupagens da
Historia, ora mais livre e saltando sob a caraça vistosa da Farça!