Capítulo 1
1914.
PREFÁCIO DO AUTOR À PRIMEIRA PARTE DESTA OBRA
Segunda Edição publicada em 1846
Do Autor ao Leitor
Leitor, quem quer que sejas e onde quer que estejas, e seja qual for a tua condição — quer membro dos escalões mais elevados da sociedade ou das camadas mais humildes da vida — rogo-te, se Deus te tiver concedido algum talento para as letras, e se o meu livro cair nas tuas mãos, que me prestes a tua assistência.
Pois no livro que tens em mãos, e que, provavelmente, já leste na sua primeira edição, é retratado um homem que é um tipo representativo do nosso Império Russo. Este homem percorre a terra russa e encontra pessoas de todas as condições — desde o nobre de berço ao mais humilde trabalhador. Tomei-o como um tipo para expor os vícios e as falhas, em vez dos méritos e das virtudes, do russo comum; e os personagens que gravitam à sua volta também foram selecionados a fim de demonstrar as nossas fraquezas e deficiências nacionais. Quanto a homens e mulheres de melhor estirpe, proponho retratá-los em volumes subsequentes. Provavelmente, muito do que descrevi parece improvável e não se desenrola como as coisas geralmente acontecem na Rússia; e a razão para isso é que me tem sido impossível aprender tudo o que desejava, visto que a vida humana não é suficientemente longa para conhecer sequer a centésima parte do que acontece dentro das fronteiras do Império Russo. Além disso, a negligência, a inexperiência e a falta de tempo levaram-me a cometer numerosos erros e imprecisões de detalhe; com o resultado de que em cada linha do livro há algo que clama por correção.
Por estas razões, rogo-te, meu leitor, que atues também como meu corretor.
Não desprezes a tarefa, pois, por mais superior que seja a tua educação, por mais elevada a tua condição, por mais insignificante que te pareça o meu livro e por mais irrisório o trabalho de o corrigir e comentar, imploro-te que faças o que te peço. E tu também, ó leitor de pouca instrução e condição humilde, rogo-te que não te consideres tão ignorante que não possas, de alguma forma, por mais pequena que seja, ajudar-me. Todo aquele que viveu no mundo e conviveu com os seus semelhantes terá notado algo que permaneceu oculto aos olhos dos outros; e, portanto, peço-te que não me prives dos teus comentários, visto que não é possível que, se leres o meu livro com atenção, nada tenhas a dizer sobre ele em algum ponto.
Por exemplo, como seria excelente se algum leitor, suficientemente rico em experiência e conhecimento da vida para estar familiarizado com o tipo de personagens que aqui descrevi, anotasse detalhadamente o livro, sem perder uma única página, e se comprometesse a lê-lo precisamente como se, pondo pena e papel diante de si, lesse primeiro algumas páginas da obra, e depois recordasse a sua própria vida, as vidas de pessoas com quem teve contacto e tudo o que viu com os seus próprios olhos ou ouviu de outros, e procedesse a anotar, confrontando-o com a sua própria experiência, o que está exposto no livro, e a registar tudo exatamente como está gravado na sua memória, e, por fim, a enviar-me as anotações à medida que brotarem da sua pena, e a continuar a fazê-lo até ter percorrido toda a obra! Sim, ele, de facto, me prestaria um serviço vital! De estilo ou beleza de expressão ele não precisaria preocupar-se, pois o valor de um livro reside na sua verdade e na sua relevância, e não na sua formulação. Nem precisaria de considerar os meus sentimentos se em algum momento se sentisse inclinado a culpar-me ou a repreender-me, ou a apontar os defeitos em vez dos acertos resultantes de qualquer falta de reflexão ou verosimilhança de que eu pudesse ser culpado. Em suma, por qualquer crítica, ser-lhe-ia grato.
Além disso, seria excelente se algum leitor das classes sociais mais elevadas, alguma pessoa que se encontra distante, tanto pela sua vida quanto pela sua educação, do círculo de pessoas que retratei no meu livro, mas que conhece a vida do círculo em que ele próprio se move, se comprometesse a ler a minha obra de maneira semelhante, e a recordar metodicamente na sua mente quaisquer membros de classes sociais superiores que tenha conhecido, e a observar cuidadosamente se existe alguma semelhança entre uma classe e outra, e se, por vezes, não se repete numa esfera superior o que é feito numa inferior, e igualmente a anotar qualquer facto adicional a este respeito que lhe possa ocorrer (isto é, qualquer facto pertinente às camadas mais elevadas da sociedade que pareça confirmar ou refutar as suas conclusões), e, por fim, a registar esse facto tal como possa ter ocorrido dentro da sua própria experiência, dando detalhes completos de pessoas (de modos individuais, tendências e costumes) e também de ambientes inanimados (de vestuário, mobiliário, artigos domésticos, e assim por diante). Pois necessito do conhecimento das classes em questão, que são a flor do nosso povo. De facto, esta mesma razão — a razão de não conhecer ainda a vida russa em todos os seus aspetos, e no grau necessário para que eu me torne um autor bem-sucedido — é o que me tem impedido, até agora, de publicar quaisquer volumes subsequentes desta história.
Mais ainda, seria excelente se alguém dotado da faculdade de imaginar e visualizar vividamente as diversas situações em que uma personagem pode ser colocada, e de acompanhar mentalmente a carreira de uma personagem num campo e noutro — com isto quero dizer alguém que possua o poder de penetrar e desenvolver as ideias do autor cuja obra pode estar a ler — examinasse cada personagem aqui retratada, e me dissesse como cada personagem deveria ter agido num determinado momento, e o que, a julgar pelos inícios de cada personagem, deveria ter acontecido com essa personagem mais tarde, e que novas circunstâncias poderiam ser concebidas nesse contexto, e que novos detalhes poderiam ser vantajosamente adicionados aos já descritos.
Posso dizer, honestamente, que considerar estes pontos para o momento em que uma nova e melhor edição do meu livro puder ser publicada me proporcionaria o maior prazer possível.
Pediria, em particular, uma coisa a qualquer leitor que esteja disposto a conceder-me o benefício do seu conselho. Isto é, pedir-lhe-ia que supusesse, ao registar as suas observações, que o está a fazer em benefício de um homem em nada igual a ele em educação, nem semelhante a ele em gostos e ideias, nem capaz de compreender críticas sem uma explicação detalhada anexa. Pelo contrário, pedir-lhe-ia que supusesse que diante dele se encontraria um homem de esclarecimento e educação incomparavelmente inferiores — um rude caipira cuja vida, do princípio ao fim, se passou em reclusão — um caipira a quem seria necessário explicar cada circunstância em detalhe, sem nunca esquecer de ser tão simples na fala como se falasse a uma criança, e que a cada passo houvesse o perigo de empregar termos que estivessem além da sua compreensão. Se estas precauções forem sempre tidas em conta por qualquer leitor que se proponha a anotar o meu livro, as observações desse leitor excederão em peso e interesse até as suas próprias expectativas, e me proporcionarão uma vantagem muito real.
Assim, desde que o meu sincero pedido seja atendido pelos meus leitores, e que entre eles se encontrem alguns espíritos bondosos dispostos a fazer como desejo, segue-se a maneira pela qual lhes pediria que me transmitissem as suas notas para minha consideração. Deverão escrever o meu nome na embalagem e incluí-la, em seguida, numa segunda embalagem endereçada ou ao Reitor da Universidade de São Petersburgo ou ao Professor Shevirev da Universidade de Moscovo, conforme uma dessas duas cidades seja a mais próxima do remetente.
Por último, ao agradecer a todos os jornalistas e literatos pelas suas críticas anteriormente publicadas ao meu livro — críticas que, apesar de uma ponta daquela intemperança e preconceito inerente à natureza humana, se revelaram de grande utilidade tanto à minha mente quanto ao meu coração — rogo a tais escritores que me favoreçam novamente com as suas críticas. Pois, com toda a sinceridade, posso assegurar-lhes que tudo o que lhes aprouver dizer para o meu aprimoramento e a minha instrução será por mim recebido com a máxima gratidão.
ALMAS MORTAS
PARTE I