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Clássicos Castelhanos: Livro de Bom Amor

por Juan Ruiz

Capítulo 1 - Parte 1

Aqui o Arcipreste repreende precisamente o Amor por, diz ele, — roubar o coração... depois o alienas e o dás a quem não o ama.

Se tudo isto não bastar e houver algum erro no nome, poderia ser a fada Morgayna, irmã do rei Artur, em cujos feitiços o enamorado crê ou julga (Trist. de Leonis).

[Nota 212: Retentar, tentar muito.— Sobervientas, sobre-ventanias ou tempestades de vento. BERC., S.M., 386: A má ventania da forte espantada | tinha a gente oprimida. D. VEGA, Disc. Sab. ceniz.: Que para ele não haverá tempestades e ventanias de mar.]

[Nota 213: Debdo, dívida, que te devo para que assim me persigas? De deb(i)tu(m), debere.— Vens-me à surdina, nunca me preparas e apercebes piscando o olho ou fazendo-me algum sinal, senão que de repente me feres o coração e de alegre me deixas triste. S. Mar. egípcia: Quando Maria se apercebeu | não pôde evitar que se ferisse.— Ledo de laetus, alegre.]

[Nota 214: Não consigo deitar-te a mão, e ainda que te pegasse ou prendesse, seria de repente. Tu me apanhas a cada passo.— Orgull-ya de orgulho.]

[Nota 215: Bendicha é a forma regular evolutiva de ben(e)dicta; bendita é a semierudita. Igualmente maldicha e maldita, de mal(e)dicta.— Em forte ponto, em mau ponto ou hora, renegando de algo. EUG. SALAZ., Sal. esp., 2, 238: Em forte ponto eu vi vossa frescura. Quij., 1, 35: Em mau ponto e hora minguada entrou em minha casa este cavaleiro.]

[Nota 216: Me assanho, me enraiveço. AYALA, Caza, 2: E guarde de os irritar, pois facilmente se irritam.]

AQUI FALA DO PECADO DA COBIÇA [217]

Contigo sempre trazes os pecados mortais:

Pela muita cobiça, os homens enganados,

Fazes-os cobiçar e ser muito ousados,

Transgredir os mandamentos, que de Deus foram dados.

[218]

De todos os pecados é raiz a cobiça:

Esta é tua filha maior; tua mordoma, a ambição:

Esta é tua alferes e tua casa gere,

Esta destrói o mundo, suborna a justiça.

[219]

A soberba e ira, que não encontra onde caiba,

Avareza e luxúria, que ardem mais que estepa,

Gula, inveja, acídia, que se alastram como lepra:

Da cobiça nascem, é ela raiz e cepa.

[220]

Em ti fazem morada, aleivoso traidor:

Com palavras muito doces, com gesto enganador,

Prometem, mandam muito os homens enamorados;

Para cumprir o que mandam, cobiçam o pior.

[221]

Cobiçam os haveres, que eles não ganharam,

Para cumprir as promessas, que com amor fizeram:

Muitos por tal cobiça o alheio furtaram,

Pelo que às suas almas e aos corpos lazraram.

[222]

Morreram pelos furtos de morte súbita,

Arrastados, enforcados de maneira estranha;

Em tudo és astuto e de má manha:

Quem tua cobiça tem, o pecado engana-o.

[223]

Por cobiça fizeste Troia ser destruída,

Pela maçã inscrita, que não devia ter sido escrita.

Quando a deu a Vénus Páris para a seduzir,

Que trouxe Helena, a quem cobiçava possuir.

[224]

Pela tua má cobiça os do Egito morreram,

Os corpos infamaram, as almas perderam;

Foram e são alvo da ira de Deus os que em ti creram:

De muito que cobiçaram, pouca parte tiveram.

[225]

Pela cobiça perde o homem o bem que tem,

Julga que terá muito mais do que lhe convém:

Não têm o que cobiçam; o seu não mantêm:

O que aconteceu ao cão, a estes lhes acontece o mesmo.

[Nota 217: Dos sete pecados capitais, dos quais agora começa a falar, como maus filhos do Amor, trataram outros muitos por aquele tempo; recorde-se Ayala. Denodados, extremados, que saem da linha.]

[Nota 218: Tua mordoma é a ambição.— Alferes, porta-estandarte; mas aqui como na copla 1096.— Oficiar, obrar, ministrar, de ofício.— Sos-tienta, tenta a justiça por baixo, ou seja, a suborna.— Cobiça e cobiçar: apetecer, de cupiditas. TOST., Bibliof. esp. Op. liter., pág. 223, etc.: A soberana coisa que nossa cobiça acende e com ansioso desejo demanda é a mulher alheia.]

[Nota 219: A cobiça ou apetite carnal é uma mãe dos demais pecados capitais.— Estepa, é planta estepária, que arde depressa.]

[Nota 220: Mandam, como prometem, fazem mandas ou promessas; para ter com que cumprir estas mandas, cobiçam até o pior.— Os homens com amor, os enamorados, para lograr seus intentos, têm que lisonjear e prometer, e para cumprir o prometido têm que ser cobiçosos até o extremo da maldade (o pior).]

[Nota 221: Explica a copla anterior.— Pelo que, pelo qual, por meio ou mediante estes furtos: `que` e `o que` se referem a uma frase inteira ou a um objeto qualquer, como relativos neutros (CEJ., Leng. Cerv., I, 233, pág. 436).]

[Nota 222: Sopit-aña, do vulgar supit-o (CEJ., Tesor., Silb., 124).— En-forcar, enforcar. BERC., Mil., 153: Quando o entenderam os que o enforcaram.— Cuqu-ero, pícaro e astuto, que anda em astúcias, cuc-anda ou cuc-o que sabe arranjar-se, procurando o alheio como esta ave.— Picaña: picardia, de picaño, pícaro. LOPE, Dos ingen., III, 12: Não fará, velhacos pícaros.]

[Nota 223: Nas bodas de Tétis e Peleu a Discórdia lançou sobre a mesa a maçã da discórdia, que era de ouro e levava gravada a inscrição: À mais formosa. Juno, Minerva e Vénus a disputaram, e designado Páris, por Júpiter, como árbitro, Juno prometeu-lhe poder e riqueza; Minerva, saber e virtude; Vénus, a posse da mulher mais formosa. Desejando Páris possuir a formosa Helena, atribuiu a Vénus a maçã. Esta ajudou-o no roubo de Helena, mas Juno e Minerva, para se vingarem, suscitaram a guerra de Troia para a destruir, por ser pátria de Páris, filho de Príamo, rei daquela cidade.]

[Nota 224: Os egípcios, que seguiram os hebreus e ficaram afogados no Mar Vermelho.]

[Nota 225: Da cobiça como concupiscência passa à cobiça como avareza do dinheiro, e compara-as muito a propósito, já que nem o lascivo nem o avarento nunca se fartam, sempre pedem mais, e, por cobiçar o alheio, perdem o próprio (c. 246).]

EXEMPLO DO MASTIM, QUE LEVAVA O PEDAÇO DE CARNE NA BOCA [226]

Mastim carniceiro num rio andava,

Um pedaço de carne na boca levava;

Com a sombra da água o dobro lhe parecia;

Cobiçou apanhá-lo, caiu-lhe o que levava.

[227]

Pela sombra enganosa e por seu pensamento vão

A carne que tinha, perdeu-a o mastim;

Não teve o que quis, não lhe foi salutar cobiçar,

Pensou ganhar; perdeu o que tinha em sua mão.

[228]

Cada dia acontece ao cobiçoso o mesmo:

Julga que ganha contigo e perde seu capital;

Desta raiz má nasce todo o mal:

É a má cobiça um pecado mortal.

[229]

O mais e o melhor, o que é mais preciado,

Depois que o homem tem por certo e já ganhado,

Nunca deve deixá-lo por um vão cuidado:

Quem deixa o que tem faz grande mau recado.

[Nota 226: Dois tanto, duplo; três tanto, triplo, etc.; aqui tanto adverbialmente. TAFUR., 161: E de gentes perto dois tantos.— Parecia-lhe ser dois o pedaço de carne. Quij., 2, 6: E que os braços se assemelham a árvores grossas.]

[Nota 227: Seu pensar vão, seu falso fantasiar ou julgar.]

[Nota 229: Mau recado, mau ganho; pós-verbal de recabdar, ganhar, lograr.]

AQUI FALA DO PECADO DA SOBERBA [230]

Muita soberba trazes onde medo não tens;

Pensas, pois não tens medo, com que passarás,

Joias para tua amiga, com que as comprarás:

Por isto roubas e furtas, pelo que penarás.

[231]

Fazes com tua soberba cometer más coisas,

Roubar aos caminhantes as joias preciosas,

Forçar muitas mulheres casadas e esposas,

Virgens e solteiras, viúvas e religiosas.

[232]

Por tais malefícios manda a lei matá-los:

Morrem de más mortes, não os podes livrar;

Leva-os o diabo pelo teu grande engano,

Fogo infernal arde onde tiveres assento.

[233]

Muitos pela tua soberba os fizeste perder;

Primeiro muitos anjos, com eles Lúcifer,

Que, por sua grande soberba e seu desagradecimento,

Das cadeiras do céu houveram de cair.

[234]

Embora de sua natureza bons foram criados,

Pela sua grande soberba foram e são danados;

Quantos pela soberba foram e são danados,

Não se poderiam escrever em mil pregos contados.

[235]

Quantas foram e são batalhas e peleias,

Injúrias e baralhas e contendas muito feias,

Amor, pela tua soberba se fazem, bem o creias:

Toda maldade do mundo existe onde quer que tu estejas.

[236]

O homem muito soberbo e muito denodado,

Que não tem medo de Deus nem busca a justiça,

Antes morre, do que outro mais fraco e mais lazrado;

Acontece-lhe como ao asno com o cavalo armado.

[Nota 230: Pelo que tu penarás, pelo qual sofrerás a justa pena.]

[Nota 231: Caminhante: viandante.]

[Nota 232: Quitar, livrar, como vimos.— Abeytar, submeter, enganar (veja 387).— Uvias (significa) ter ocasião ou lugar de assentar ou pôr teu assento, de ob-viare; daqui ant-uviar, encontrar-se, topar com; antuvi-ón, encontro; de antuvión, de repente e porrada.]

[Nota 234: Danados, condenados, conforme à sua etimologia de damnare, con-demnare, condenar. Dizia-se dos condenados ao inferno. ILLESC., H. pontif., 3, 6: Se não morresse também sua alma para sempre jamais com os danados no inferno.]

[Nota 235: Varalhas, baralhas, rixas, contendas. FONS., Vid. Cr., 1, 3, 12: Separaram-se para evitar baralhas de criados e pastores. É pós-verbal derivado de baralhar, discutir, confundir, sujeitar e subjugar.]

[Nota 236: Nem busca o justo: isto é, nem atenta ao devido, ao que é justo, à justiça, valor que se exprime por 'aguisado', em oposição a 'desaguisado', que significa injustiça. De guisa, modo natural, próprio e devido.— Antre por ante, se não é erro de copista, como mientras e mientre, de mente.— Fraco: magro, no registo rústico.— Lazrado, de lazrar, como lacerado, lacerar, sofrer trabalhos; de lacer-a.]

EXEMPLO DO CAVALO E DO ASNO [237]

Ia lidar em campo o cavalo façanheiro,

Porque forçou a dama o seu senhor valente;

Loricas bem levadas, sente-se muito valente,

Muito à frente dele ia o asno malsofrido.

[238]

Com os pés e as mãos e com o nobre freio,

O cavalo soberbo fazia tão grande ruído,

Que às outras bestas espantava como trovão;

O asno com o medo ficou, e não lhe foi bom.

[239]

O asno recusava-se com a carga.

Andava mal e pouco, ao cavalo embaraça;

O cavalo derrubou-o em meio da varga:

— Diz: "Dom vilão néscio, buscai carreira longa."

[240]

Deu um salto no campo, ligeiro e apercebido;

Pensou ser vencedor e ficou vencido.

No corpo, foi ferido muito fortemente de lança;

As entranhas lhe saíam, estava muito mal.

[241]

Depois que saiu do campo, não valia uma cevada:

Puseram-no a arar e a trazer a lenha,

Às vezes à nora, às vezes à azenha:

Paga o soberbo pelo amor da dama.

[242]

Tinha esfoladas do jugo as cervizes,

Do ajoelhar às vezes inchadas as narizes,

Joelhos esfolados, fazendo muitas preces;

Olhos fundos, vermelhos como pés de perdizes;

[243]

Os quadris saídos, sumidas as ilhadas,

O espinhaço agudo, as orelhas caídas:

O asno néscio viu-o: riu bem três vezes,

— Diz: "Companheiro soberbo, onde estão tuas investidas?"

[244]

— "Onde está teu nobre freio e tua dourada sela?

— Onde está tua soberba, onde está tua rinchada?

— Sempre viverás mesquinho e com muita mácula:

— Vingue tua soberba tantas más postilhas."

[245]

Aqui tomem exemplo e a lição cada dia

Os que são muito soberbos com o seu grande orgulho:

Que força, idade e honra, saúde e valentia

Não podem durar sempre; vão-se com a mocidade.

[Nota 237: Ia lidar em campo ou estacada, levando o seu valente senhor. A causa da lide foi o seu senhor ter forçado uma senhora, pelo que o desafiaram. Quij., 2, 52: Onde a ambos darei campo seguro..., que dão campo franco aos que se combatem.]

[Nota 238: Sueno, forma natural derivada de sônu(m), som.— Ficou, parou quieto. Assim, por cessar, nas Memor. histór. da Acad. da Hist., V, 117: Fica a justiça. Daqui chamam quedado e quedadote ao touro muito parado.]

[Nota 239: Embargar, embaraçar. Celest., 1, pág. 22: A indignidade da minha pessoa o embarga. Daqui embargo, sem embargo, sem embaraço, de barga ou varga.— Varga, monte ou encosta, como lugar coberto de matos; por isso em Castela é casinha coberta de palha, entre moçárabes e em Aragão choça com ramagem. Daqui Vargas, personificação deste conceito, de modo que: `Averigue-o Vargas` alude ao emaranhado do monte e diz-se do muito emaranhado, enredado e obscuro. Ao secretário de Filipe II assentar-lhe-ia bem o dito, mas ele é mais antigo.— Larga, entre delinquentes, é a estrada ou carreira.]

[Nota 240: O cavalo entrou na lide tão bizarro, mas foi ferido muito fortemente de lança.]

[Nota 241: O soberbo cavalo paga o amor que teve seu amo à dama.— Escotar, pagar o escote ou gasto.]

[Nota 242: Do ajoelhar, hinoj-ar, pôr-se ou cair de joelhos ou ajoelhar, isto é, joelho em terra, de maneira que batia com o focinho nela e lhe inchavam as narizes.— Prizes, preces, caía de joelhos, como quem vai rezar.]

[Nota 243: Riu, de rir, clamar apaixonada ou fortemente; rijo é o conato apaixonado; rij-oso, o furioso, apaixonado (CEJ., Tesor. L., 118).— Empelladas: os empurrões que davas quando ias ufano à lide, e até por isso riu, remedando asnalmente o relinchar com que antes o cavalo se exibia. De empeller, de impellere, saiu empell-ada, como empell-ón.]

[Nota 244: Rinchada: o discutir comigo como discutiste ao ir à lide; de reñ-ir saiu ren-cilla.— Viverás, viverás.— Mácula, tacha moral, além de mancha física e compaixão. A. ALV., Silv. Enc., 2 c.: Não há em vós mácula nem um destino. LEÓN, Job, 11: Poderás levantar ao céu puro, inteiro | o rosto e sem mácula e confiado. Que as postilhas e feridas de agora vinguem as tuas soberbas de antanho.]

AQUI FALA DO PECADO DA AVAREZA [246]

Tu és avareza, és muito escasso,

Ao tomar te alegras, o dar não é teu hábito:

Não te fartará o Douro com a sua enxurrada;

Sempre me sinto mal, cada vez que te escuto.

[247]

Pela grande escassez foi condenado o rico,

Que ao pobre São Lázaro não deu sequer um pedaço:

Não queres ver nem amas pobre, grande nem pequeno,

Nem dos teus tesouros lhe queres dar um bocado.

[248]

Embora te seja ordenado por santo mandamento

Que vistais o nu e sacies o faminto

E ao pobre deias pousada; tanto és avarento,

Que nunca deste a um, pedindo-te cem.

[249]

Mesquinho, o que farás no dia da afronta,

Quando de teus haveres e de tua muita renda

Deus te demandar conta da despesa?

Não te valerão tesouros nem cinquenta reinos.

[250]

Quando tu eras pobre, e tinhas doença,

Então suspiravas, fazias penitência,

Pedias que te dessem saúde e mantença,

Que repartirias com pobres, não farias falha.

[251]

Ouviu Deus tuas querelas e deu-te bom conselho,

Saúde e grande riqueza e tesouro sobejo;

Quando vês o pobre, cai-te a sobrancelha,

Fazes como o lobo doente no vale.

[Nota 246: Ducho, acostumado, de ductus.— Aguaducho, do mesmo ductus, caudal de água, canal dela ou aqueduto, avenida e cheia, como ainda se usa em Bilbao. J. PIN., Agr., 18, 27: Plínio escreve que com as enxurradas e terremotos caiu um pedaço de um monte. HOROZCO. Canc., pág. 11: As hortas muito maltratadas | com enxurradas contínuas.]

[Nota 247: Çatico, um pedacinho. A. ALV., Silv. Dom., 4 quar., 3 c.: Para dar-lhe um pedacinho de pão não pouco resmungado (ao pobre). J. ENC., 219: Pedacinhos de pão, tu os tens, venturoso. Diminutivo de zato, pedaço.— Pico tem parecido valor, como é sabido. Alude à história de Lázaro, em São Lucas, c. 16.]

[Nota 249: Afronta, de onde (provém) afronta, de afront-ar, hoje em Serra de Gata por afrentar, do lançar em cara, na fronte, fronte(m), frons. Lis. Ros., 4, 3: Brumandilón o afrontou.— Despesa, o gasto, o que se gasta no ordinário; de despender ou gastar. Quij., 1, 23: Com vinte e três maravedis, que ganhava cada dia, mediava eu minha despesa.— Pronuncie-se reínos.]

[Nota 250: Então de estonce, com o s de ante-s, etc.; de ex-tûnc-ce, hoje então.— Falha, erro, falsidade, dano, de falhar. BERC., S.M., 395: Conheciam sua falha que eram desviados.]

[Nota 251: Sobejo, abundante. Alex., 380: Legou gentes sobejas. L. FERN., 91: É grande minha sobrancelha | e muito sobejo.— Cair a sobrancelha, de tristeza.]

EXEMPLO DO LOBO E DA CABRA E DA GRUA [252]

O lobo comia a cabra por merenda:

Atravessou-lhe um osso, estava em apuros,

Ia-se afogar, pedia com pressa

Médicos e mestres, pois queria fazer emenda.

[253]

Prometeu a quem o tirasse tesouros e riqueza.

Veio... a grua do alto,

Com o bico tirou-o com sutileza;

O lobo ficou são, para comer sem preguiça.

[254]

Disse a grua ao lobo que lhe pagasse;

O lobo disse: — Como! Não te poderia engolir

— O pescoço com os meus dentes, se quisesse apertar-te?

— Pois que isso te sirva de soldo, pois não te quis matar.

[255]

Bem assim tu o fazes: agora que estás cheio

De pão e de dinheiros, que obtiveste à força do alheio,

Não queres dar ao pobre um pouco de centeio:

Assim te secarás como o orvalho e o feno.

[256]

Em fazer bem ao mau, nada o aproveita:

Homem desagradecido nunca paga o bem feito;

O mau homem despreza o bom conhecimento:

O bem que o homem lhe faz diz que lhe é devido.

[Nota 252: Ueso, osso, cuja h é para que u não se pronuncie como b.— Queria afogar-se, estava para, ia a.— Corrienda, adv., como de propósito.— Físicos, médicos; mestres, cirurgiões. No primeiro terço do século XV escreveu o livro de medicina intitulado O menor dano da Medicina o grande médico Mestre Afonso Chirino, professor de medicina e físico do muito alto, esclarecido, muito poderoso Rei dom João o segundo, alcaide e examinador-mor dos físicos e cirurgiões de seus Reinos e Senhorios. Tem doutrinas curiosas, sensatas e não poucas que hoje ressuscitaram como novidades, por exemplo: "Sabei certamente que é melhor curar sem medicinas do que com elas... Tende sem dúvida que a natureza há de curar as enfermidades e não as medicinas." A terceira parte, sobretudo, é digna de ser lida: "do Regimento de Sanidade", que trata "em refrear as paixões da alma que impedem a saúde". Arnaldo de Villanova, nascido nos domínios de Aragão, e que morreu no início do século XIV, foi o pai da química médica, descobriu o espírito de vinho, o óleo de terebintina e as águas de cheiro. Entre outras obras escreveu Liber vitae Philosophorum, sive de conservatione inventutis et reparatione senectutis; Conservandae bonae valetudinis praecepta; Praxis medicinalis, etc.]

[Nota 253: De cima da alteza, do alto, do ar; somo, de summu(m). Cid, 3651: O capacete de cima à parte o atirava. Alteza, como altanaria, das aves que voam alto.— Ficou, achou-se. Alex. 74: Tu ficarias honrado.]

[Nota 254: Apertar, apertar.— Soldo, sirva-te de paga ou soldo, de salário.]

[Nota 256: Não adianta fazer bem ao mau, porque o desagradecido nunca retribui o benefício (bem feito); o mau homem despreza o reconhecimento e diz que o bem que se lhe faz é por dever-lhe.— Pagar, pagar o devido, de peito, o que se paga, tributo, de pactum, pacto. VILLAV., Mosq., 1, 55: Sem que à morte sua linhagem pague | o tributo com ânsias e dores.]

AQUI FALA DO PECADO DA LUXÚRIA [257]

Sempre está a luxúria onde quer que tu estejas:

Adultério e fornicação ainda desejas,

Logo queres pecar com quem quer que tu vejas,

Para cumprir a luxúria piscando as olhadelas.

[258]

Pela luxúria fizeste pecar o profeta David,

Que matou Urias, quando o mandou para a lide

Pôr nas primeiras filas, quando lhe disse: — Ide,

— Levai esta minha carta a Joabe e vinde.

[259]

Por amor de Bate-Seba, a mulher de Urias,

Foi David homicida e cometeu falhas contra Deus;

Não edificou por isso o templo em todos os seus dias,

Fez grande penitência pelas tuas artimanhas.

[260]

Foram pela luxúria cinco nobres cidades

Queimadas e destruídas, as três por suas maldades,

As outras duas não por culpa própria, mas pelas vizinhanças,

Por más vizinhanças se perdem herdades.

[261]

Não te quero, vizinho, nem me venhas tão depressa.

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