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Um HerĂłi do Nosso Tempo

por Mikhail IĂșrievitch LĂ©rmontov

CapĂ­tulo 1

CAPÍTULO I

Viajava de posta de Tiflis.

Minha carroça levava apenas uma pequena mala, que continha anotaçÔes de viagem sobre a GeĂłrgia, e estava apenas meio cheia; felizmente para vocĂȘs, leitores, a maior parte se perdeu, mas a mala e o restante do seu conteĂșdo permaneceram intactos, felizmente para mim.

Ao entrarmos no vale de Koishaur, o sol jå se punha atrås da crista nevada das montanhas. Para realizar a subida do Monte Koishaur antes do anoitecer, meu cocheiro osseta apressava os cavalos incansavelmente, cantando com entusiasmo a plenos pulmÔes.

Que lugar glorioso Ă© aquele vale! Por todos os lados, erguem-se montanhas inacessĂ­veis; encostas Ă­ngremes e amarelas sulcadas por canais de ĂĄgua; rochas avermelhadas drapeadas com hera verde e coroadas com cachos de plĂĄtanos.

Lå em cima, a uma altura imensa, estende-se a franja dourada da neve. Lå embaixo, rola o Rio Aragva que, depois de irromper ruidosamente das profundezas escuras e enevoadas do desfiladeiro, e abraçado a um riacho sem nome, estende-se como um fio de prata, suas åguas cintilando como uma serpente de escamas brilhantes.

Ao pé do Monte Koishaur, paramos num dukhan. [1] Cerca de vinte georgianos e montanheses reuniam-se ali, numa multidão barulhenta, e, perto dali, uma caravana de camelos acampara para pernoitar. Fui obrigado a alugar bois para arrastar minha carroça por aquela montanha amaldiçoada, pois jå era outono e as estradas estavam escorregadias devido ao gelo. Além disso, a subida tinha cerca de dois verstas [2] de comprimento.

Não havia outra opção, então aluguei seis bois e alguns ossetas. Um deles carregou minha mala, e os demais, gritando quase em uníssono, puseram-se a ajudar os bois.

Seguindo a minha, vinha outra carroça, e surpreendeu-me ver que quatro bois a puxavam com a maior facilidade, apesar de estar carregada atĂ© o topo. AtrĂĄs dela, caminhava o proprietĂĄrio, fumando um pequeno cachimbo cabardino com detalhes de prata. Usava uma gorra circassiana felpuda e um capote de oficial sem dragonas, e parecia ter cerca de cinquenta anos. A tez escura mostrava que seu rosto hĂĄ muito conhecia os sĂłis transcaucasianos, e a prematura brancura de seu bigode destoava de sua firme caminhada e de sua aparĂȘncia robusta. Aproximei-me e o saudei. Ele retribuiu meu cumprimento em silĂȘncio, soltando uma imensa nuvem de fumaça.

— Parece que somos companheiros de viagem.

Novamente, ele se curvou em silĂȘncio.

— Suponho que esteja indo para Stavropol?

— Sim, senhor, exatamente — com coisas do Governo.

— Pode me dizer como Ă© que sua carroça, tĂŁo pesadamente carregada, estĂĄ sendo puxada sem dificuldade por quatro bois, enquanto seis mal conseguem mover a minha, mesmo vazia, e com todos aqueles ossetas ajudando?

Ele sorriu astutamente e lançou-me um olhar significativo.

— Não está há muito tempo no Cáucaso, eu diria?

— Cerca de um ano — respondi.

Ele sorriu uma segunda vez.

— Bem?

— Exatamente, senhor — ele respondeu. — SĂŁo feras terrĂ­veis, esses asiĂĄticos! VocĂȘ pensa que todo esse grito significa que estĂŁo ajudando os bois? Ora, sĂł o diabo consegue entender o que eles gritam. Os bois, porĂ©m, entendem; e se vocĂȘ atrelasse uns vinte, eles ainda nĂŁo se moveriam enquanto os ossetas gritassem daquele jeito deles
 Canalhas horrĂ­veis! Mas o que se pode fazer com eles? Adoram extorquir dinheiro de pessoas que viajam por aqui. Os velhacos foram mimados! Espere e verĂĄ: eles vĂŁo arrancar uma gorjeta de vocĂȘ, alĂ©m do aluguel. Eu os conheço de longa data, nĂŁo conseguem me enganar!

— VocĂȘ estĂĄ servindo aqui hĂĄ muito tempo?

— Sim, estive aqui sob Aleksei Petrovich — [3] ele respondeu, assumindo um ar de dignidade. — Eu era subtenente quando ele veio para a Linha; e fui promovido duas vezes, durante o seu comando, por açÔes contra os montanheses.

— E agora?

— Agora estou no terceiro batalhĂŁo da Linha. E vocĂȘ mesmo?

Eu lhe disse.

Com isso, a conversa terminou, e continuamos a caminhar em silĂȘncio, lado a lado. No cume da montanha, encontramos neve. O sol se pĂŽs, e — como geralmente acontece no sul — a noite seguiu o dia sem qualquer intervalo de crepĂșsculo. Graças, porĂ©m, ao brilho da neve, pudemos distinguir facilmente a estrada, que ainda subia a encosta da montanha, embora nĂŁo tĂŁo Ă­ngreme como antes. Ordenei aos ossetas que colocassem minha mala na carroça e substituĂ­ssem os bois por cavalos. EntĂŁo, pela Ășltima vez, contemplei o vale; mas a densa nĂ©voa que havia jorrado em ondas dos desfiladeiros o velava completamente, e nem um Ășnico som agora chegava aos nossos ouvidos, vindo lĂĄ de baixo. Os ossetas me cercaram clamorosamente e exigiram gorjetas; mas o capitĂŁo de estado-maior gritou tĂŁo ameaçadoramente para eles que se dispersaram num instante.

— Que gente Ă© essa! — disse ele. — Nem sabem o russo para “pĂŁo”, mas dominam a frase “Oficial, dĂȘ-nos uma gorjeta!” Na minha opiniĂŁo, os prĂłprios tĂĄrtaros sĂŁo melhores, pelo menos nĂŁo sĂŁo bĂȘbados...

EstĂĄvamos agora a cerca de uma lĂ©gua da Estação. Ao nosso redor, tudo estava tĂŁo silencioso, de fato, que era possĂ­vel seguir o voo de um mosquito pelo zumbido de suas asas. À nossa esquerda, erguia-se o desfiladeiro, profundo e negro. AtrĂĄs dele e Ă  nossa frente, elevavam-se os cumes azul-escuros das montanhas, todos sulcados e cobertos por camadas de neve, e destacavam-se contra o horizonte pĂĄlido, que ainda retinha os Ășltimos reflexos do brilho da noite. As estrelas cintilavam no cĂ©u escuro, e de alguma estranha forma, parecia-me que estavam muito mais altas do que em nosso prĂłprio paĂ­s do norte. De ambos os lados da estrada, rochas nuas e negras projetavam-se; aqui e ali, arbustos espreitavam por baixo da neve; mas nem uma Ășnica folha murcha se mexia, e em meio Ă quele sono morto da natureza, era animador ouvir o bufar dos trĂȘs cansados cavalos de posta e o tilintar irregular do sino russo. [4]

— Teremos um tempo glorioso amanhã — eu disse.

O capitĂŁo de estado-maior nĂŁo respondeu uma palavra, mas apontou com o dedo para uma montanha alta que se erguia diretamente Ă  nossa frente.

— O que Ă© isso? — Eu perguntei.

— Monte Gut.

— Bem, e daí?

— VocĂȘ nĂŁo vĂȘ que estĂĄ fumegando?

Era verdade: fumaça subia do Monte Gut. Por suas encostas rastejavam suaves correntes de nuvens, e no cume repousava uma nuvem de escuridão tão densa que parecia uma mancha no céu escuro.

A essa altura, jĂĄ conseguĂ­amos distinguir a Estação de Posta e os telhados das cabanas que a cercavam; luzes acolhedoras cintilavam Ă  nossa frente, quando de repente um vento Ășmido e gelado se levantou, o desfiladeiro retumbou, e uma chuva fina começou a cair. Mal tive tempo de jogar meu manto de feltro sobre mim quando a neve desceu. Olhei para o capitĂŁo com profundo respeito.

— Teremos que passar a noite aqui — disse ele, com irritação no tom. — Não há como atravessar as montanhas numa nevasca dessas.

— Diga-me, houve alguma avalanche no Monte Krestov? — perguntou ele ao cocheiro.

— Não, senhor — respondeu o osseta —, mas há muitas ameaçando cair — muitas.

Devido Ă  falta de uma sala de viajantes na Estação, fomos alojados para pernoitar numa cabana enfumaçada. Convidei meu companheiro de viagem para bebermos um copo de chĂĄ comigo, pois eu trouxera meu bule de ferro fundido — meu Ășnico consolo durante minhas viagens pelo CĂĄucaso.

Um lado da cabana estava encostado no rochedo, e trĂȘs degraus molhados e escorregadios levavam Ă  porta. Entrei tateando e tropecei numa vaca (com essas pessoas, o estĂĄbulo serve de quarto de empregado). NĂŁo sabia para que lado virar — ovelhas baliam de um lado e um cĂŁo rosnava do outro. Felizmente, porĂ©m, percebi de um lado um fraco brilho de luz, e com sua ajuda consegui encontrar outra abertura que servia de porta. E aqui se revelou um quadro nada desinteressante. A ampla cabana, cujo teto repousava sobre dois pilares enegrecidos pela fumaça, estava cheia de gente. No centro do chĂŁo, uma pequena fogueira crepitava, e a fumaça, empurrada de volta pelo vento de uma abertura no teto, espalhava-se num vĂ©u tĂŁo denso que por muito tempo nĂŁo consegui enxergar ao meu redor. Sentados junto Ă  fogueira estavam duas velhas, vĂĄrias crianças e um georgiano esguio — todos em trapos. NĂŁo havia outra opção! Refugiamo-nos junto Ă  fogueira e acendemos nossos cachimbos; e logo o bule cantava convidativamente.

— Gente miserĂĄvel, essa! — eu disse ao capitĂŁo, indicando nossos anfitriĂ”es sujos, que nos olhavam em silĂȘncio numa espĂ©cie de torpor.

— E um povo totalmente estĂșpido tambĂ©m! — ele respondeu. — Acredita, eles sĂŁo absolutamente ignorantes e incapazes da menor civilização! Por que mesmo nossos cabardianos ou chechenos, ladrĂ”es e maltrapilhos que sejam, sĂŁo verdadeiros audaciosos, apesar de tudo. Enquanto estes outros nĂŁo gostam de armas, e vocĂȘ nunca verĂĄ uma adaga decente num deles! Ossetas por toda parte!

— VocĂȘ estĂĄ hĂĄ muito tempo no paĂ­s dos chechenos?

— Sim, estive aquartelado lá por uns dez anos com minha companhia numa fortaleza, perto de Kamennyi Brod. [5] Conhece o lugar?

— Ouvi o nome.

— Posso dizer, meu rapaz, que tivemos o suficiente desses chechenos ousados. Atualmente, graças a Deus, as coisas estĂŁo mais calmas; mas nos velhos tempos vocĂȘ sĂł precisava se afastar cem passos da muralha e, onde quer que fosse, teria a certeza de encontrar um diabo peludo Ă  sua espera. VocĂȘ sĂł precisava deixar seus pensamentos vagarem e a qualquer momento um laço estaria em seu pescoço ou uma bala na nuca! Bravos sujeitos, no entanto! ...

— VocĂȘ deve ter tido muitas aventuras, suponho? — eu disse, impulsionado pela curiosidade.

— Claro! Muitas...

Nesse ponto, ele começou a puxar o bigode esquerdo, deixou a cabeça pender sobre o peito e mergulhou em pensamentos. Tinha grande vontade de extrair dele alguma pequena anedota — um desejo natural a todos os que viajam e fazem anotaçÔes.

Enquanto isso, o chĂĄ estava pronto. Tirei dois copos de viagem da minha mala e, enchendo um deles, coloquei-o diante do capitĂŁo.

Ele sorveu o chĂĄ e disse, como se falasse consigo mesmo:

— Sim, muitas!

Essa exclamação me deu grandes esperanças. Seu velho oficial caucasiano adora, eu sei, conversar e contar histĂłrias; ele raramente consegue ter uma chance de fazĂȘ-lo. Pode ser seu destino ficar aquartelado cinco anos ou mais com sua companhia em algum lugar isolado, e durante todo esse tempo ele nĂŁo ouvirĂĄ um “bom dia” de alma alguma (porque o sargento diz “boa saĂșde”). E, de fato, ele teria bons motivos para se tornar loquaz — com um povo selvagem e interessante ao seu redor, perigo a ser enfrentado todos os dias e muitos incidentes maravilhosos acontecendo.

É em circunstñncias como esta que nos queixamos involuntariamente de que tão poucos de nossos compatriotas tomam notas.

— Gostaria de colocar um pouco de rum no seu chá? — disse ao meu companheiro. — Tenho um rum branco comigo — de Tiflis; e o tempo está frio agora.

— Não, obrigado, senhor; não bebo.

— SĂ©rio?

— Exatamente. Jurei parar de beber. Uma vez, sabe, quando eu era subtenente, alguns de nĂłs exageraram um pouco. Naquela mesma noite houve um alarme, e fomos para a frente, meio embriagados! NĂłs pegamos uma bronca e tanto, posso lhe dizer, quando Aleksei Petrovich ficou sabendo de nĂłs! CĂ©us nos salvem, que raiva ele estava! Ele esteve a um fio de nos levar Ă  corte marcial. É assim que as coisas acontecem! VocĂȘ pode facilmente passar um ano inteiro sem ver uma alma; mas basta ir e tomar um gole e vocĂȘ estĂĄ perdido!

Ao ouvir isso, quase perdi a esperança.

— Veja os circassianos, agora — continuou ele —; basta que bebam à vontade de buza [6] num casamento ou funeral, e as facas virão à tona. Numa ocasião, tive alguma dificuldade em escapar ileso, e isso aconteceu na casa de um príncipe “amigo” [7], onde eu era convidado.

— Como assim? — perguntei.

— Aqui, eu vou te contar...

Ele encheu o cachimbo, tragou a fumaça e começou sua história.

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