Aa

David Copperfield

por Charles Dickens

CapĂ­tulo 1 - Parte 1

Eu o fiz; mas o CapitĂŁo era um CapitĂŁo e um herĂłi, a despeito de todas as gramĂĄticas de todas as lĂ­nguas do mundo, mortas ou vivas.

Este era o meu Ășnico e constante conforto. Quando penso nisso, a imagem sempre surge na minha mente: a de uma noite de verĂŁo, os rapazes a brincar no adro da igreja, e eu sentado na minha cama, lendo como se a vida dependesse disso.

Cada celeiro na vizinhança, cada pedra da igreja, e cada palmo do adro, tinha na minha mente alguma associação própria, ligada a estes livros, e representava alguma localidade famosa neles. Vi Tom Pipes subir ao campanårio da igreja; observei Strap, com a mochila às costas, a parar para descansar no portãozinho; e sei que o Comodoro Trunnion frequentava aquele clube com o Sr. Pickle, na sala da nossa pequena taberna da aldeia.

O leitor agora entende, tĂŁo bem quanto eu, o que eu era quando cheguei Ă quele ponto da minha histĂłria juvenil ao qual estou agora a voltar.

Uma manhã, quando entrei na sala com os meus livros, encontrei a minha mãe com um ar ansioso, a Srta. Murdstone com um ar firme, e o Sr. Murdstone a prender algo à bengala – uma bengala flexível e esguia, que ele parou de prender quando entrei, e que equilibrava e agitava no ar.

— Digo-te, Clara — disse o Sr. Murdstone — eu próprio fui muitas vezes açoitado.

— Pois claro; Ă© evidente — disse a Srta. Murdstone.

— Certamente, minha querida Jane — balbuciou minha mãe, com mansidão. — Mas... mas achas que fez bem ao Edward?

— Achas que fez mal ao Edward, Clara? — perguntou o Sr. Murdstone, gravemente.

— Essa Ă© a questĂŁo — disse a irmĂŁ dele.

A isso, a minha mãe respondeu: — Certamente, minha querida Jane. E não disse mais nada.

Senti-me apreensivo de estar pessoalmente interessado neste diĂĄlogo, e procurei o olhar do Sr. Murdstone enquanto este se fixava no meu.

— Agora, David — disse ele — e vi aquele olhar novamente enquanto o dizia — deves ser muito mais cuidadoso hoje do que o habitual. — Ele equilibrou a bengala mais uma vez, e agitou-a de novo; e, tendo terminado a sua preparação, pousou-a ao lado dele, com um olhar impressionante, e pegou no seu livro.

Isto foi um balde de ågua fria para o meu ùnimo, para começar. Senti as palavras das minhas liçÔes a escorregar, não uma a uma, nem linha a linha, mas a pågina inteira; tentei agarrå-las; mas elas pareciam, se é que me posso exprimir assim, ter calçado patins e a fugir de mim com uma suavidade imparåvel.

Começamos mal, e piorou. Eu havia entrado com a ideia de me distinguir, concebendo que estava muito bem preparado; mas revelou-se um erro. Livro após livro era adicionado à pilha de falhas, com a Srta. Murdstone a vigiar-nos firmemente o tempo todo. E quando chegamos finalmente aos cinco mil queijos (açoites que ele deu naquele dia, lembro-me), minha mãe desatou a chorar.

— Clara! — disse a Srta. Murdstone, em sua voz de aviso.

— Não estou muito bem, minha querida Jane, eu acho — disse minha mãe.

Vi-o piscar o olho, solenemente, Ă  irmĂŁ, enquanto se levantava e dizia, pegando na bengala:

— Ora, Jane, dificilmente podemos esperar que Clara suporte, com firmeza perfeita, a preocupação e o tormento que David lhe causou hoje. Isso seria exigir estoicismo demais. Clara está muito mais forte e melhorada, mas não podemos esperar tanto dela. David, tu e eu vamos subir, rapaz.

Quando ele me levou pela porta, minha mãe correu na nossa direção. A Srta. Murdstone interveio: — Clara! És uma perfeita tola? — Vi minha mãe tapar os ouvidos então, e ouvi-a chorar.

Ele levou-me para o meu quarto devagar e gravemente — estou certo de que sentia prazer naquele desfile formal da aplicação da justiça — e quando lá chegamos, subitamente prendeu a minha cabeça debaixo do seu braço.

— Senhor Murdstone! Senhor! — gritei para ele. — Não! Por favor, não me bata! Tentei aprender, senhor, mas não consigo aprender enquanto o senhor e a Srta. Murdstone estão por perto. Não consigo, de facto!

— Não consegue, de facto, David? — disse ele. — Vamos tentar isso.

Ele tinha a minha cabeça como num torno, mas eu entrelacei-me à volta dele de alguma forma, e detive-o por um momento, implorando-lhe que não me batesse. Foi apenas por um momento que o detive, pois ele me atingiu fortemente um instante depois, e no mesmo instante agarrei a mão com que ele me segurava e a levei à boca, cravando-lhe os dentes com força. Fico com os dentes arrepiados só de pensar nisso.

Ele bateu-me entĂŁo, como se quisesse bater-me atĂ© Ă  morte. Por cima de todo o ruĂ­do que fizemos, ouvi-os correr pelas escadas, e gritar — ouvi a minha mĂŁe gritar — e Peggotty. Depois ele foi-se embora; e a porta foi trancada por fora; e eu estava deitado, febril e quente, dilacerado e dorido, e a espumar de raiva, Ă  minha maneira insignificante, no chĂŁo.

Como me lembro bem, quando me acalmei, de um silĂȘncio tĂŁo antinatural que parecia reinar por toda a casa! Como me lembro bem, quando a minha dor e paixĂŁo começaram a arrefecer, como me comecei a sentir um malvado!

Fiquei a ouvir por um bom tempo, mas nĂŁo havia um som. Rastejei do chĂŁo e vi o meu rosto no espelho, tĂŁo inchado, vermelho e feio que quase me assustou. As minhas marcas doĂ­am e estavam rĂ­gidas, e fizeram-me chorar novamente quando me movi; mas nĂŁo eram nada comparadas com a culpa que sentia. Pesava mais no meu peito do que se eu tivesse sido um criminoso atroz, atrevo-me a dizer.

Havia começado a escurecer, e eu tinha fechado a janela (tinha estado deitado, na maior parte do tempo, com a cabeça no parapeito, ora chorando, ora a dormitar, ora a olhar para fora sem interesse), quando a chave foi virada, e a Srta. Murdstone entrou com pão, carne e leite. Ela os pousou na mesa sem uma palavra, olhando para mim o tempo todo com firmeza exemplar, e depois retirou-se, trancando a porta atrås dela.

Muito depois de escurecer, fiquei lå sentado, a perguntar-me se mais alguém viria. Quando isso me pareceu improvåvel para aquela noite, despi-me e fui para a cama; e, lå, comecei a pensar com medo no que me seria feito. Teria eu cometido um ato criminoso? Seria detido e enviado para a prisão? Estaria em perigo de ser enforcado?

Nunca esquecerei o despertar, na manhã seguinte; ser alegre e revigorado no primeiro momento, e depois ser oprimido pela velha e sombria opressão da lembrança. A Srta. Murdstone reapareceu antes que eu saísse da cama; disse-me, explicitamente, que eu estava livre para passear no jardim por meia hora e não mais; e retirou-se, deixando a porta aberta, para que eu pudesse aproveitar essa permissão.

Assim fiz, e assim fazia todas as manhĂŁs do meu aprisionamento, que durou cinco dias. Se pudesse ter visto minha mĂŁe a sĂłs, ter-me-ia ajoelhado diante dela e implorado seu perdĂŁo; mas nĂŁo vi ninguĂ©m, exceto a Srta. Murdstone, durante todo o tempo – exceto nas oraçÔes da noite na sala; para as quais eu era escoltado pela Srta. Murdstone depois que todos os outros se sentavam; onde eu estava postado, um jovem proscrito, sozinho perto da porta; e de onde eu era solenemente conduzido pela minha carcereira, antes que qualquer um se levantasse da postura devocional. Apenas observei que minha mĂŁe estava o mais longe possĂ­vel de mim, e mantinha o rosto virado para o outro lado, de modo que nunca o vi; e que a mĂŁo do Sr. Murdstone estava enfaixada num grande invĂłlucro de linho.

A duração daqueles cinco dias eu nĂŁo consigo transmitir a ninguĂ©m. Eles ocupam o lugar de anos na minha memĂłria. A forma como eu ouvia todos os incidentes da casa que se tornavam audĂ­veis para mim; o toque das campainhas, o abrir e fechar das portas, o murmĂșrio das vozes, os passos nas escadas; qualquer riso, assobio ou canto, lĂĄ fora, que me parecia mais sombrio do que qualquer outra coisa na minha solidĂŁo e desgraça — o ritmo incerto das horas, especialmente Ă  noite, quando eu acordava pensando que era manhĂŁ, e descobria que a famĂ­lia ainda nĂŁo tinha ido para a cama, e que toda a duração da noite ainda estava para vir — os sonhos deprimidos e pesadelos que tive — o regresso do dia, meio-dia, tarde, noite, quando os rapazes brincavam no adro, e eu os observava Ă  distĂąncia dentro do quarto, envergonhado de me mostrar Ă  janela para que nĂŁo soubessem que eu estava preso — a estranha sensação de nunca me ouvir a falar — os intervalos fugazes de algo parecido com alegria, que vinham com a comida e a bebida, e que desapareciam com elas — o inĂ­cio da chuva numa noite, com um cheiro fresco, e a sua queda cada vez mais rĂĄpida entre mim e a igreja, atĂ© que ela e a noite que se adensava pareciam apagar-me na escuridĂŁo, no medo e no remorso — tudo isto parece ter-se repetido por anos em vez de dias, estĂĄ tĂŁo vĂ­vida e fortemente gravado na minha memĂłria. Na Ășltima noite da minha reclusĂŁo, fui acordado ao ouvir o meu nome sussurrado. Saltei da cama e, estendendo os braços no escuro, disse: — És tu, Peggotty?

NĂŁo houve resposta imediata, mas logo ouvi o meu nome novamente, num tom tĂŁo misterioso e terrĂ­vel, que penso que teria tido um ataque, se nĂŁo me tivesse ocorrido que a voz vinha do buraco da fechadura.

Abri caminho Ă s apalpadelas atĂ© Ă  porta e, encostando os lĂĄbios ao buraco da fechadura, sussurrei: — És tu, Peggotty, querida?

— Sim, meu precioso Davy — respondeu ela. — SĂȘ leve como um rato, ou o Gato vai ouvir-nos.

Entendi que isso se referia Ă  Srta. Murdstone, e percebi a urgĂȘncia do caso; o quarto dela ficava ali perto.

— Como está a mamã, querida Peggotty? Ela está muito zangada comigo?

Pude ouvir Peggotty a chorar baixinho do seu lado do buraco da fechadura, como eu fazia do meu, antes de ela responder. — Não. Não muito.

— O que vai ser feito de mim, querida Peggotty? Sabes?

— Escola. Perto de Londres — foi a resposta de Peggotty. Fui obrigado a fazĂȘ-la repetir, pois ela disse-o pela primeira vez bem na minha garganta, porque eu tinha esquecido de afastar a boca do buraco da fechadura e colocar lĂĄ o ouvido; e embora as suas palavras me fizessem muitas cĂłcegas, eu nĂŁo as ouvi.

— Quando, Peggotty?

— Amanhã.

— É por isso que a Srta. Murdstone tirou as roupas das minhas gavetas? — o que ela tinha feito, embora eu tenha esquecido de mencionar.

— Sim — disse Peggotty. — Caixa.

— Não verei a mamã?

— Sim — disse Peggotty. — De manhã.

Então Peggotty encostou a boca ao buraco da fechadura e proferiu estas palavras através dele com tanto sentimento e seriedade quanto um buraco de fechadura jamais foi o meio de comunicação, atrevo-me a afirmar: proferindo cada pequena frase quebrada num pequeno surto convulsivo próprio.

— Davy, querido. Se nĂŁo tenho sido tĂŁo Ă­ntima contigo ultimamente como costumava ser, nĂŁo Ă© por nĂŁo te amar. Amo-te tanto, ou mais, meu lindo boneco. É porque pensei que era melhor para ti. E para outra pessoa. Davy, meu querido, estĂĄs a ouvir? Consegues ouvir?

— S-s-s-sim, Peggotty! — solucei.

— Meu querido! — disse Peggotty, com infinita compaixĂŁo. — O que quero dizer Ă© que nunca me deves esquecer. Pois eu nunca te esquecerei. E cuidarei tanto da tua mamĂŁ, Davy, como sempre cuidei de ti. E nĂŁo a deixarei. O dia pode chegar em que ela ficarĂĄ feliz por recostar a sua pobre cabeça no braço da sua estĂșpida, rabugenta e velha Peggotty novamente. E eu vou escrever-te, meu querido. Embora eu nĂŁo seja nenhuma estudiosa. E eu
 eu
 — Peggotty começou a beijar o buraco da fechadura, pois nĂŁo me podia beijar.

— Obrigado, querida Peggotty! — disse eu. — Ah, obrigado! Obrigado! Vais prometer-me uma coisa, Peggotty? Vais escrever e dizer ao Sr. Peggotty e à pequena Em’ly, e à Sra. Gummidge e ao Ham, que eu não sou tão mau como eles talvez suponham, e que lhes mandei todo o meu amor — especialmente à pequena Em’ly? Vais, por favor, Peggotty?

A boa alma prometeu, e ambos beijamos o buraco da fechadura com o maior afeto — eu dei-lhe umas palmadinhas com a mĂŁo, lembro-me, como se fosse o seu rosto honesto — e separamo-nos. A partir daquela noite, cresceu no meu peito um sentimento por Peggotty que nĂŁo consigo muito bem definir. Ela nĂŁo substituiu a minha mĂŁe; ninguĂ©m poderia fazer isso; mas ela preencheu um vazio no meu coração, que se fechou sobre ela, e eu senti por ela algo que nunca senti por nenhum outro ser humano. Era um tipo de afeto cĂŽmico, tambĂ©m; e, no entanto, se ela tivesse morrido, nĂŁo consigo imaginar o que eu teria feito, ou como teria encenado a tragĂ©dia que teria sido para mim.

De manhã, a Srta. Murdstone apareceu como de costume, e disse-me que eu ia para a escola; o que não era propriamente uma novidade para mim, como ela supunha. Informou-me também que, quando estivesse vestido, deveria descer à sala e tomar o meu pequeno-almoço. Lå, encontrei a minha mãe, muito pålida e com os olhos vermelhos: para os braços dela corri, e implorei o seu perdão com a minha alma em sofrimento.

— Oh, Davy! — disse ela. — Que pudesses magoar alguĂ©m que amo! Tenta ser melhor, ora para seres melhor! Eu te perdoo; mas estou tĂŁo aflita, Davy, por teres paixĂ”es tĂŁo mĂĄs no teu coração.

Haviam-na persuadido de que eu era um sujeito perverso, e ela estava mais triste por isso do que pela minha partida. Senti-o profundamente. Tentei comer o meu pequeno-almoço de despedida, mas as minhas lågrimas caíam sobre o pão com manteiga e escorriam para o chå. Vi a minha mãe olhar para mim por vezes, e depois lançar um olhar à vigilante Srta. Murdstone, e depois baixar os olhos, ou desviar o olhar.

— A caixa do Mestre Copperfield lá! — disse a Srta. Murdstone, quando se ouviram rodas no portão.

Procurei Peggotty, mas nĂŁo era ela; nem ela nem o Sr. Murdstone apareceram. O meu antigo conhecido, o transportador, estava Ă  porta. A caixa foi levada para o seu carro e colocada lĂĄ.

— Clara! — disse a Srta. Murdstone, em sua nota de aviso.

— Pronto, minha querida Jane — respondeu minha mĂŁe. — Adeus, Davy. Vais para o teu prĂłprio bem. Adeus, meu filho. VoltarĂĄs para casa nas fĂ©rias e serĂĄs um rapaz melhor.

— Clara! — repetiu a Srta. Murdstone.

— Certamente, minha querida Jane — replicou a minha mãe, que me segurava. — Eu te perdoo, meu querido rapaz. Deus te abençoe!

— Clara! — repetiu a Srta. Murdstone.

A Srta. Murdstone teve a bondade de me levar até à carroça e de me dizer, no caminho, que esperava que eu me arrependesse antes de ter um mau fim; e então entrei na carroça, e o cavalo preguiçoso partiu com ela.

CAPÍTULO 5. SOU ENVIADO PARA LONGE DE CASA

DevĂ­amos ter andado cerca de meia milha, e o meu lenço estava completamente molhado, quando o transportador parou bruscamente. Olhando para fora para averiguar porquĂȘ, vi, para minha surpresa, Peggotty sair de uma sebe e subir para a carroça. Ela abraçou-me com os dois braços, e apertou-me contra o seu espartilho atĂ© que a pressĂŁo no meu nariz se tornasse extremamente dolorosa, embora eu sĂł o tenha pensado depois, quando o achei muito sensĂ­vel. Peggotty nĂŁo disse uma Ășnica palavra. Soltando um dos braços, enfiou-o no bolso atĂ© ao cotovelo, e tirou uns sacos de papel com bolos que me enfiou nos bolsos, e uma bolsa que me pĂŽs na mĂŁo, mas nĂŁo disse uma palavra. Depois de mais um e Ășltimo abraço com os dois braços, ela desceu da carroça e fugiu; e, a minha convicção Ă©, e sempre foi, sem um Ășnico botĂŁo no vestido. Apanhei um, dos vĂĄrios que rolavam, e guardei-o como recordação por muito tempo.

O transportador olhou para mim, como se perguntasse se ela voltaria. Eu sacudi a cabeça e disse que não. — Então, vá — disse o transportador ao cavalo preguiçoso; que obedeceu prontamente.

Tendo chorado o måximo que pude até então, comecei a pensar que não valia mais a pena chorar, especialmente porque nem Roderick Random nem aquele Capitão da Marinha Real Britùnica jamais haviam chorado, que eu me lembrasse, em situaçÔes difíceis. O transportador, vendo-me nesta resolução, propÎs que o meu lenço de bolso fosse estendido sobre o dorso do cavalo para secar. Agradeci-lhe e assenti; e parecia particularmente pequeno, naquelas circunstùncias.

Tinha agora tempo livre para examinar a carteira. Era uma carteira de couro rĂ­gido, com fecho de mola, e tinha trĂȘs xelins brilhantes dentro, que Peggotty, evidentemente, tinha polido com giz para o meu maior deleite. Mas o seu conteĂșdo mais precioso eram duas meias coroas dobradas num pedaço de papel, no qual estava escrito, Ă  mĂŁo da minha mĂŁe, ‘Para Davy. Com o meu amor.’ Fiquei tĂŁo comovido com isto, que pedi ao transportador que tivesse a bondade de me alcançar o lenço novamente; mas ele disse que achava melhor eu passar sem ele, e eu percebi que de facto era assim. Limpei entĂŁo os olhos na manga e parei de chorar.

Para sempre, tambĂ©m; embora, em consequĂȘncia das minhas emoçÔes anteriores, eu ainda fosse ocasionalmente assaltado por um soluço tempestuoso. Depois de termos andado um pouco, perguntei ao transportador se ele ia atĂ© ao fim.

— AtĂ© onde? — perguntou o transportador.

— Lá — disse eu.

— Onde Ă© lĂĄ? — perguntou o transportador.

— Perto de Londres — disse eu.

— Ora, este cavalo — disse o transportador, puxando a rĂ©dea para indicĂĄ-lo — estaria mais morto que porco antes de percorrer metade do caminho.

— Então só vai a Yarmouth? — perguntei.

— É por aĂ­ — disse o transportador. — E lĂĄ eu te levarei Ă  diligĂȘncia, e a diligĂȘncia te levarĂĄ para — onde quer que seja.

Como isto era muito para o transportador (cujo nome era Sr. Barkis) dizer — sendo ele, como observei num capítulo anterior, de temperamento fleumático e nada conversador —, ofereci-lhe um bolo como sinal de atenção, que ele comeu de uma só vez, exatamente como um elefante, e que não causou mais impressão no seu grande rosto do que teria causado no de um elefante.

— Foi ELA que os fez, agora? — disse o Sr. Barkis, sempre a inclinar-se para a frente, à sua maneira desleixada, no estribo da carroça, com um braço em cada joelho.

— Peggotty, quer dizer, senhor?

— Ah! — disse o Sr. Barkis. — Ela.

— Sim. Ela faz toda a nossa pastelaria e toda a nossa comida.

— Ah, faz mesmo? — disse o Sr. Barkis. Ele fez a boca como se fosse assobiar, mas não assobiou. Sentou-se a olhar para as orelhas do cavalo, como se visse algo novo ali; e ficou assim, por um tempo considerável. Mais tarde, disse: — Sem namorados, acho eu?

— Doces, disse, Sr. Barkis? — Pois pensei que ele queria mais alguma coisa para comer, e tinha aludido especificamente a esse tipo de refresco.

— CoraçÔes — disse o Sr. Barkis. — Namorados; ninguĂ©m anda com ela!

— Com Peggotty?

— Ah! — disse ele. — Ela.

— Ah, não. Ela nunca teve um namorado.

— NĂŁo teve, Ă© mesmo! — disse o Sr. Barkis.

Novamente, ele fez a boca para assobiar, e novamente nĂŁo assobiou, mas ficou a olhar para as orelhas do cavalo.

— EntĂŁo ela faz — disse o Sr. Barkis, apĂłs um longo intervalo de reflexĂŁo — todas as tortas de maçã, e faz toda a comida, nĂŁo Ă©?

Respondi que sim.

— Bem. Vou dizer-te uma coisa — disse o Sr. Barkis. — Talvez pudesses escrever-lhe?

— Certamente lhe escreverei — respondi.

— Ah! — disse ele, voltando lentamente os olhos para mim. — Bem! Se fores escrever-lhe, talvez te lembres de dizer que Barkis está disposto; sim?

— Que Barkis está disposto — repeti eu, inocentemente. — É toda a mensagem?

— S-sim — disse ele, considerando. — Sim. Barkis está disposto.

— Mas o senhor estará em Blunderstone novamente amanhã, Sr. Barkis — disse eu, hesitando um pouco à ideia de estar longe dali —, e poderia dar a sua própria mensagem muito melhor.

Como ele repudiou esta sugestĂŁo, no entanto, com um aceno de cabeça, e mais uma vez confirmou o seu pedido anterior, dizendo, com profunda gravidade: — Barkis estĂĄ disposto. Essa Ă© a mensagem —, prontamente assumi a sua transmissĂŁo. Enquanto esperava pela diligĂȘncia no hotel em Yarmouth naquela mesma tarde, arranjei uma folha de papel e um tinteiro, e escrevi uma nota para Peggotty, que dizia assim: 'Minha querida Peggotty. Cheguei aqui em segurança. Barkis estĂĄ disposto. O meu amor para a mamĂŁ. Com carinho. P.S. Ele diz que quer especialmente que saibas — BARKIS ESTÁ DISPOSTO.'

Quando eu assumi essa comissĂŁo prospectivamente, o Sr. Barkis recaiu em perfeito silĂȘncio; e eu, sentindo-me bastante exausto por tudo o que havia acontecido ultimamente, deitei-me num saco da carroça e adormeci. Dormi profundamente atĂ© chegarmos a Yarmouth; que era tĂŁo inteiramente novo e estranho para mim no pĂĄtio da estalagem para onde fomos, que abandonei de imediato uma esperança latente que tinha de encontrar lĂĄ alguns membros da famĂ­lia do Sr. Peggotty, talvez atĂ© a prĂłpria pequena Em'ly.

O que vocĂȘ achou desta histĂłria?

Seja o primeiro a avaliar!

VocĂȘ precisa entrar para avaliar.

VocĂȘ tambĂ©m pode gostar