CapĂtulo 1 - Parte 1
Eu o fiz; mas o CapitĂŁo era um CapitĂŁo e um herĂłi, a despeito de todas as gramĂĄticas de todas as lĂnguas do mundo, mortas ou vivas.
Este era o meu Ășnico e constante conforto. Quando penso nisso, a imagem sempre surge na minha mente: a de uma noite de verĂŁo, os rapazes a brincar no adro da igreja, e eu sentado na minha cama, lendo como se a vida dependesse disso.
Cada celeiro na vizinhança, cada pedra da igreja, e cada palmo do adro, tinha na minha mente alguma associação própria, ligada a estes livros, e representava alguma localidade famosa neles. Vi Tom Pipes subir ao campanårio da igreja; observei Strap, com a mochila às costas, a parar para descansar no portãozinho; e sei que o Comodoro Trunnion frequentava aquele clube com o Sr. Pickle, na sala da nossa pequena taberna da aldeia.
O leitor agora entende, tĂŁo bem quanto eu, o que eu era quando cheguei Ă quele ponto da minha histĂłria juvenil ao qual estou agora a voltar.
Uma manhĂŁ, quando entrei na sala com os meus livros, encontrei a minha mĂŁe com um ar ansioso, a Srta. Murdstone com um ar firme, e o Sr. Murdstone a prender algo Ă bengala â uma bengala flexĂvel e esguia, que ele parou de prender quando entrei, e que equilibrava e agitava no ar.
â Digo-te, Clara â disse o Sr. Murdstone â eu prĂłprio fui muitas vezes açoitado.
â Pois claro; Ă© evidente â disse a Srta. Murdstone.
â Certamente, minha querida Jane â balbuciou minha mĂŁe, com mansidĂŁo. â Mas... mas achas que fez bem ao Edward?
â Achas que fez mal ao Edward, Clara? â perguntou o Sr. Murdstone, gravemente.
â Essa Ă© a questĂŁo â disse a irmĂŁ dele.
A isso, a minha mĂŁe respondeu: â Certamente, minha querida Jane. E nĂŁo disse mais nada.
Senti-me apreensivo de estar pessoalmente interessado neste diĂĄlogo, e procurei o olhar do Sr. Murdstone enquanto este se fixava no meu.
â Agora, David â disse ele â e vi aquele olhar novamente enquanto o dizia â deves ser muito mais cuidadoso hoje do que o habitual. â Ele equilibrou a bengala mais uma vez, e agitou-a de novo; e, tendo terminado a sua preparação, pousou-a ao lado dele, com um olhar impressionante, e pegou no seu livro.
Isto foi um balde de ågua fria para o meu ùnimo, para começar. Senti as palavras das minhas liçÔes a escorregar, não uma a uma, nem linha a linha, mas a pågina inteira; tentei agarrå-las; mas elas pareciam, se é que me posso exprimir assim, ter calçado patins e a fugir de mim com uma suavidade imparåvel.
Começamos mal, e piorou. Eu havia entrado com a ideia de me distinguir, concebendo que estava muito bem preparado; mas revelou-se um erro. Livro após livro era adicionado à pilha de falhas, com a Srta. Murdstone a vigiar-nos firmemente o tempo todo. E quando chegamos finalmente aos cinco mil queijos (açoites que ele deu naquele dia, lembro-me), minha mãe desatou a chorar.
â Clara! â disse a Srta. Murdstone, em sua voz de aviso.
â NĂŁo estou muito bem, minha querida Jane, eu acho â disse minha mĂŁe.
Vi-o piscar o olho, solenemente, Ă irmĂŁ, enquanto se levantava e dizia, pegando na bengala:
â Ora, Jane, dificilmente podemos esperar que Clara suporte, com firmeza perfeita, a preocupação e o tormento que David lhe causou hoje. Isso seria exigir estoicismo demais. Clara estĂĄ muito mais forte e melhorada, mas nĂŁo podemos esperar tanto dela. David, tu e eu vamos subir, rapaz.
Quando ele me levou pela porta, minha mĂŁe correu na nossa direção. A Srta. Murdstone interveio: â Clara! Ăs uma perfeita tola? â Vi minha mĂŁe tapar os ouvidos entĂŁo, e ouvi-a chorar.
Ele levou-me para o meu quarto devagar e gravemente â estou certo de que sentia prazer naquele desfile formal da aplicação da justiça â e quando lĂĄ chegamos, subitamente prendeu a minha cabeça debaixo do seu braço.
â Senhor Murdstone! Senhor! â gritei para ele. â NĂŁo! Por favor, nĂŁo me bata! Tentei aprender, senhor, mas nĂŁo consigo aprender enquanto o senhor e a Srta. Murdstone estĂŁo por perto. NĂŁo consigo, de facto!
â NĂŁo consegue, de facto, David? â disse ele. â Vamos tentar isso.
Ele tinha a minha cabeça como num torno, mas eu entrelacei-me à volta dele de alguma forma, e detive-o por um momento, implorando-lhe que não me batesse. Foi apenas por um momento que o detive, pois ele me atingiu fortemente um instante depois, e no mesmo instante agarrei a mão com que ele me segurava e a levei à boca, cravando-lhe os dentes com força. Fico com os dentes arrepiados só de pensar nisso.
Ele bateu-me entĂŁo, como se quisesse bater-me atĂ© Ă morte. Por cima de todo o ruĂdo que fizemos, ouvi-os correr pelas escadas, e gritar â ouvi a minha mĂŁe gritar â e Peggotty. Depois ele foi-se embora; e a porta foi trancada por fora; e eu estava deitado, febril e quente, dilacerado e dorido, e a espumar de raiva, Ă minha maneira insignificante, no chĂŁo.
Como me lembro bem, quando me acalmei, de um silĂȘncio tĂŁo antinatural que parecia reinar por toda a casa! Como me lembro bem, quando a minha dor e paixĂŁo começaram a arrefecer, como me comecei a sentir um malvado!
Fiquei a ouvir por um bom tempo, mas nĂŁo havia um som. Rastejei do chĂŁo e vi o meu rosto no espelho, tĂŁo inchado, vermelho e feio que quase me assustou. As minhas marcas doĂam e estavam rĂgidas, e fizeram-me chorar novamente quando me movi; mas nĂŁo eram nada comparadas com a culpa que sentia. Pesava mais no meu peito do que se eu tivesse sido um criminoso atroz, atrevo-me a dizer.
Havia começado a escurecer, e eu tinha fechado a janela (tinha estado deitado, na maior parte do tempo, com a cabeça no parapeito, ora chorando, ora a dormitar, ora a olhar para fora sem interesse), quando a chave foi virada, e a Srta. Murdstone entrou com pão, carne e leite. Ela os pousou na mesa sem uma palavra, olhando para mim o tempo todo com firmeza exemplar, e depois retirou-se, trancando a porta atrås dela.
Muito depois de escurecer, fiquei lå sentado, a perguntar-me se mais alguém viria. Quando isso me pareceu improvåvel para aquela noite, despi-me e fui para a cama; e, lå, comecei a pensar com medo no que me seria feito. Teria eu cometido um ato criminoso? Seria detido e enviado para a prisão? Estaria em perigo de ser enforcado?
Nunca esquecerei o despertar, na manhĂŁ seguinte; ser alegre e revigorado no primeiro momento, e depois ser oprimido pela velha e sombria opressĂŁo da lembrança. A Srta. Murdstone reapareceu antes que eu saĂsse da cama; disse-me, explicitamente, que eu estava livre para passear no jardim por meia hora e nĂŁo mais; e retirou-se, deixando a porta aberta, para que eu pudesse aproveitar essa permissĂŁo.
Assim fiz, e assim fazia todas as manhĂŁs do meu aprisionamento, que durou cinco dias. Se pudesse ter visto minha mĂŁe a sĂłs, ter-me-ia ajoelhado diante dela e implorado seu perdĂŁo; mas nĂŁo vi ninguĂ©m, exceto a Srta. Murdstone, durante todo o tempo â exceto nas oraçÔes da noite na sala; para as quais eu era escoltado pela Srta. Murdstone depois que todos os outros se sentavam; onde eu estava postado, um jovem proscrito, sozinho perto da porta; e de onde eu era solenemente conduzido pela minha carcereira, antes que qualquer um se levantasse da postura devocional. Apenas observei que minha mĂŁe estava o mais longe possĂvel de mim, e mantinha o rosto virado para o outro lado, de modo que nunca o vi; e que a mĂŁo do Sr. Murdstone estava enfaixada num grande invĂłlucro de linho.
A duração daqueles cinco dias eu nĂŁo consigo transmitir a ninguĂ©m. Eles ocupam o lugar de anos na minha memĂłria. A forma como eu ouvia todos os incidentes da casa que se tornavam audĂveis para mim; o toque das campainhas, o abrir e fechar das portas, o murmĂșrio das vozes, os passos nas escadas; qualquer riso, assobio ou canto, lĂĄ fora, que me parecia mais sombrio do que qualquer outra coisa na minha solidĂŁo e desgraça â o ritmo incerto das horas, especialmente Ă noite, quando eu acordava pensando que era manhĂŁ, e descobria que a famĂlia ainda nĂŁo tinha ido para a cama, e que toda a duração da noite ainda estava para vir â os sonhos deprimidos e pesadelos que tive â o regresso do dia, meio-dia, tarde, noite, quando os rapazes brincavam no adro, e eu os observava Ă distĂąncia dentro do quarto, envergonhado de me mostrar Ă janela para que nĂŁo soubessem que eu estava preso â a estranha sensação de nunca me ouvir a falar â os intervalos fugazes de algo parecido com alegria, que vinham com a comida e a bebida, e que desapareciam com elas â o inĂcio da chuva numa noite, com um cheiro fresco, e a sua queda cada vez mais rĂĄpida entre mim e a igreja, atĂ© que ela e a noite que se adensava pareciam apagar-me na escuridĂŁo, no medo e no remorso â tudo isto parece ter-se repetido por anos em vez de dias, estĂĄ tĂŁo vĂvida e fortemente gravado na minha memĂłria. Na Ășltima noite da minha reclusĂŁo, fui acordado ao ouvir o meu nome sussurrado. Saltei da cama e, estendendo os braços no escuro, disse: â Ăs tu, Peggotty?
NĂŁo houve resposta imediata, mas logo ouvi o meu nome novamente, num tom tĂŁo misterioso e terrĂvel, que penso que teria tido um ataque, se nĂŁo me tivesse ocorrido que a voz vinha do buraco da fechadura.
Abri caminho Ă s apalpadelas atĂ© Ă porta e, encostando os lĂĄbios ao buraco da fechadura, sussurrei: â Ăs tu, Peggotty, querida?
â Sim, meu precioso Davy â respondeu ela. â SĂȘ leve como um rato, ou o Gato vai ouvir-nos.
Entendi que isso se referia Ă Srta. Murdstone, e percebi a urgĂȘncia do caso; o quarto dela ficava ali perto.
â Como estĂĄ a mamĂŁ, querida Peggotty? Ela estĂĄ muito zangada comigo?
Pude ouvir Peggotty a chorar baixinho do seu lado do buraco da fechadura, como eu fazia do meu, antes de ela responder. â NĂŁo. NĂŁo muito.
â O que vai ser feito de mim, querida Peggotty? Sabes?
â Escola. Perto de Londres â foi a resposta de Peggotty. Fui obrigado a fazĂȘ-la repetir, pois ela disse-o pela primeira vez bem na minha garganta, porque eu tinha esquecido de afastar a boca do buraco da fechadura e colocar lĂĄ o ouvido; e embora as suas palavras me fizessem muitas cĂłcegas, eu nĂŁo as ouvi.
â Quando, Peggotty?
â AmanhĂŁ.
â Ă por isso que a Srta. Murdstone tirou as roupas das minhas gavetas? â o que ela tinha feito, embora eu tenha esquecido de mencionar.
â Sim â disse Peggotty. â Caixa.
â NĂŁo verei a mamĂŁ?
â Sim â disse Peggotty. â De manhĂŁ.
Então Peggotty encostou a boca ao buraco da fechadura e proferiu estas palavras através dele com tanto sentimento e seriedade quanto um buraco de fechadura jamais foi o meio de comunicação, atrevo-me a afirmar: proferindo cada pequena frase quebrada num pequeno surto convulsivo próprio.
â Davy, querido. Se nĂŁo tenho sido tĂŁo Ăntima contigo ultimamente como costumava ser, nĂŁo Ă© por nĂŁo te amar. Amo-te tanto, ou mais, meu lindo boneco. Ă porque pensei que era melhor para ti. E para outra pessoa. Davy, meu querido, estĂĄs a ouvir? Consegues ouvir?
â S-s-s-sim, Peggotty! â solucei.
â Meu querido! â disse Peggotty, com infinita compaixĂŁo. â O que quero dizer Ă© que nunca me deves esquecer. Pois eu nunca te esquecerei. E cuidarei tanto da tua mamĂŁ, Davy, como sempre cuidei de ti. E nĂŁo a deixarei. O dia pode chegar em que ela ficarĂĄ feliz por recostar a sua pobre cabeça no braço da sua estĂșpida, rabugenta e velha Peggotty novamente. E eu vou escrever-te, meu querido. Embora eu nĂŁo seja nenhuma estudiosa. E eu⊠eu⊠â Peggotty começou a beijar o buraco da fechadura, pois nĂŁo me podia beijar.
â Obrigado, querida Peggotty! â disse eu. â Ah, obrigado! Obrigado! Vais prometer-me uma coisa, Peggotty? Vais escrever e dizer ao Sr. Peggotty e Ă pequena Emâly, e Ă Sra. Gummidge e ao Ham, que eu nĂŁo sou tĂŁo mau como eles talvez suponham, e que lhes mandei todo o meu amor â especialmente Ă pequena Emâly? Vais, por favor, Peggotty?
A boa alma prometeu, e ambos beijamos o buraco da fechadura com o maior afeto â eu dei-lhe umas palmadinhas com a mĂŁo, lembro-me, como se fosse o seu rosto honesto â e separamo-nos. A partir daquela noite, cresceu no meu peito um sentimento por Peggotty que nĂŁo consigo muito bem definir. Ela nĂŁo substituiu a minha mĂŁe; ninguĂ©m poderia fazer isso; mas ela preencheu um vazio no meu coração, que se fechou sobre ela, e eu senti por ela algo que nunca senti por nenhum outro ser humano. Era um tipo de afeto cĂŽmico, tambĂ©m; e, no entanto, se ela tivesse morrido, nĂŁo consigo imaginar o que eu teria feito, ou como teria encenado a tragĂ©dia que teria sido para mim.
De manhã, a Srta. Murdstone apareceu como de costume, e disse-me que eu ia para a escola; o que não era propriamente uma novidade para mim, como ela supunha. Informou-me também que, quando estivesse vestido, deveria descer à sala e tomar o meu pequeno-almoço. Lå, encontrei a minha mãe, muito pålida e com os olhos vermelhos: para os braços dela corri, e implorei o seu perdão com a minha alma em sofrimento.
â Oh, Davy! â disse ela. â Que pudesses magoar alguĂ©m que amo! Tenta ser melhor, ora para seres melhor! Eu te perdoo; mas estou tĂŁo aflita, Davy, por teres paixĂ”es tĂŁo mĂĄs no teu coração.
Haviam-na persuadido de que eu era um sujeito perverso, e ela estava mais triste por isso do que pela minha partida. Senti-o profundamente. Tentei comer o meu pequeno-almoço de despedida, mas as minhas lĂĄgrimas caĂam sobre o pĂŁo com manteiga e escorriam para o chĂĄ. Vi a minha mĂŁe olhar para mim por vezes, e depois lançar um olhar Ă vigilante Srta. Murdstone, e depois baixar os olhos, ou desviar o olhar.
â A caixa do Mestre Copperfield lĂĄ! â disse a Srta. Murdstone, quando se ouviram rodas no portĂŁo.
Procurei Peggotty, mas nĂŁo era ela; nem ela nem o Sr. Murdstone apareceram. O meu antigo conhecido, o transportador, estava Ă porta. A caixa foi levada para o seu carro e colocada lĂĄ.
â Clara! â disse a Srta. Murdstone, em sua nota de aviso.
â Pronto, minha querida Jane â respondeu minha mĂŁe. â Adeus, Davy. Vais para o teu prĂłprio bem. Adeus, meu filho. VoltarĂĄs para casa nas fĂ©rias e serĂĄs um rapaz melhor.
â Clara! â repetiu a Srta. Murdstone.
â Certamente, minha querida Jane â replicou a minha mĂŁe, que me segurava. â Eu te perdoo, meu querido rapaz. Deus te abençoe!
â Clara! â repetiu a Srta. Murdstone.
A Srta. Murdstone teve a bondade de me levar até à carroça e de me dizer, no caminho, que esperava que eu me arrependesse antes de ter um mau fim; e então entrei na carroça, e o cavalo preguiçoso partiu com ela.
CAPĂTULO 5. SOU ENVIADO PARA LONGE DE CASA
DevĂamos ter andado cerca de meia milha, e o meu lenço estava completamente molhado, quando o transportador parou bruscamente. Olhando para fora para averiguar porquĂȘ, vi, para minha surpresa, Peggotty sair de uma sebe e subir para a carroça. Ela abraçou-me com os dois braços, e apertou-me contra o seu espartilho atĂ© que a pressĂŁo no meu nariz se tornasse extremamente dolorosa, embora eu sĂł o tenha pensado depois, quando o achei muito sensĂvel. Peggotty nĂŁo disse uma Ășnica palavra. Soltando um dos braços, enfiou-o no bolso atĂ© ao cotovelo, e tirou uns sacos de papel com bolos que me enfiou nos bolsos, e uma bolsa que me pĂŽs na mĂŁo, mas nĂŁo disse uma palavra. Depois de mais um e Ășltimo abraço com os dois braços, ela desceu da carroça e fugiu; e, a minha convicção Ă©, e sempre foi, sem um Ășnico botĂŁo no vestido. Apanhei um, dos vĂĄrios que rolavam, e guardei-o como recordação por muito tempo.
O transportador olhou para mim, como se perguntasse se ela voltaria. Eu sacudi a cabeça e disse que nĂŁo. â EntĂŁo, vĂĄ â disse o transportador ao cavalo preguiçoso; que obedeceu prontamente.
Tendo chorado o mĂĄximo que pude atĂ© entĂŁo, comecei a pensar que nĂŁo valia mais a pena chorar, especialmente porque nem Roderick Random nem aquele CapitĂŁo da Marinha Real BritĂąnica jamais haviam chorado, que eu me lembrasse, em situaçÔes difĂceis. O transportador, vendo-me nesta resolução, propĂŽs que o meu lenço de bolso fosse estendido sobre o dorso do cavalo para secar. Agradeci-lhe e assenti; e parecia particularmente pequeno, naquelas circunstĂąncias.
Tinha agora tempo livre para examinar a carteira. Era uma carteira de couro rĂgido, com fecho de mola, e tinha trĂȘs xelins brilhantes dentro, que Peggotty, evidentemente, tinha polido com giz para o meu maior deleite. Mas o seu conteĂșdo mais precioso eram duas meias coroas dobradas num pedaço de papel, no qual estava escrito, Ă mĂŁo da minha mĂŁe, âPara Davy. Com o meu amor.â Fiquei tĂŁo comovido com isto, que pedi ao transportador que tivesse a bondade de me alcançar o lenço novamente; mas ele disse que achava melhor eu passar sem ele, e eu percebi que de facto era assim. Limpei entĂŁo os olhos na manga e parei de chorar.
Para sempre, tambĂ©m; embora, em consequĂȘncia das minhas emoçÔes anteriores, eu ainda fosse ocasionalmente assaltado por um soluço tempestuoso. Depois de termos andado um pouco, perguntei ao transportador se ele ia atĂ© ao fim.
â AtĂ© onde? â perguntou o transportador.
â LĂĄ â disse eu.
â Onde Ă© lĂĄ? â perguntou o transportador.
â Perto de Londres â disse eu.
â Ora, este cavalo â disse o transportador, puxando a rĂ©dea para indicĂĄ-lo â estaria mais morto que porco antes de percorrer metade do caminho.
â EntĂŁo sĂł vai a Yarmouth? â perguntei.
â Ă por aĂ â disse o transportador. â E lĂĄ eu te levarei Ă diligĂȘncia, e a diligĂȘncia te levarĂĄ para â onde quer que seja.
Como isto era muito para o transportador (cujo nome era Sr. Barkis) dizer â sendo ele, como observei num capĂtulo anterior, de temperamento fleumĂĄtico e nada conversador â, ofereci-lhe um bolo como sinal de atenção, que ele comeu de uma sĂł vez, exatamente como um elefante, e que nĂŁo causou mais impressĂŁo no seu grande rosto do que teria causado no de um elefante.
â Foi ELA que os fez, agora? â disse o Sr. Barkis, sempre a inclinar-se para a frente, Ă sua maneira desleixada, no estribo da carroça, com um braço em cada joelho.
â Peggotty, quer dizer, senhor?
â Ah! â disse o Sr. Barkis. â Ela.
â Sim. Ela faz toda a nossa pastelaria e toda a nossa comida.
â Ah, faz mesmo? â disse o Sr. Barkis. Ele fez a boca como se fosse assobiar, mas nĂŁo assobiou. Sentou-se a olhar para as orelhas do cavalo, como se visse algo novo ali; e ficou assim, por um tempo considerĂĄvel. Mais tarde, disse: â Sem namorados, acho eu?
â Doces, disse, Sr. Barkis? â Pois pensei que ele queria mais alguma coisa para comer, e tinha aludido especificamente a esse tipo de refresco.
â CoraçÔes â disse o Sr. Barkis. â Namorados; ninguĂ©m anda com ela!
â Com Peggotty?
â Ah! â disse ele. â Ela.
â Ah, nĂŁo. Ela nunca teve um namorado.
â NĂŁo teve, Ă© mesmo! â disse o Sr. Barkis.
Novamente, ele fez a boca para assobiar, e novamente nĂŁo assobiou, mas ficou a olhar para as orelhas do cavalo.
â EntĂŁo ela faz â disse o Sr. Barkis, apĂłs um longo intervalo de reflexĂŁo â todas as tortas de maçã, e faz toda a comida, nĂŁo Ă©?
Respondi que sim.
â Bem. Vou dizer-te uma coisa â disse o Sr. Barkis. â Talvez pudesses escrever-lhe?
â Certamente lhe escreverei â respondi.
â Ah! â disse ele, voltando lentamente os olhos para mim. â Bem! Se fores escrever-lhe, talvez te lembres de dizer que Barkis estĂĄ disposto; sim?
â Que Barkis estĂĄ disposto â repeti eu, inocentemente. â Ă toda a mensagem?
â S-sim â disse ele, considerando. â Sim. Barkis estĂĄ disposto.
â Mas o senhor estarĂĄ em Blunderstone novamente amanhĂŁ, Sr. Barkis â disse eu, hesitando um pouco Ă ideia de estar longe dali â, e poderia dar a sua prĂłpria mensagem muito melhor.
Como ele repudiou esta sugestĂŁo, no entanto, com um aceno de cabeça, e mais uma vez confirmou o seu pedido anterior, dizendo, com profunda gravidade: â Barkis estĂĄ disposto. Essa Ă© a mensagem â, prontamente assumi a sua transmissĂŁo. Enquanto esperava pela diligĂȘncia no hotel em Yarmouth naquela mesma tarde, arranjei uma folha de papel e um tinteiro, e escrevi uma nota para Peggotty, que dizia assim: 'Minha querida Peggotty. Cheguei aqui em segurança. Barkis estĂĄ disposto. O meu amor para a mamĂŁ. Com carinho. P.S. Ele diz que quer especialmente que saibas â BARKIS ESTĂ DISPOSTO.'
Quando eu assumi essa comissĂŁo prospectivamente, o Sr. Barkis recaiu em perfeito silĂȘncio; e eu, sentindo-me bastante exausto por tudo o que havia acontecido ultimamente, deitei-me num saco da carroça e adormeci. Dormi profundamente atĂ© chegarmos a Yarmouth; que era tĂŁo inteiramente novo e estranho para mim no pĂĄtio da estalagem para onde fomos, que abandonei de imediato uma esperança latente que tinha de encontrar lĂĄ alguns membros da famĂlia do Sr. Peggotty, talvez atĂ© a prĂłpria pequena Em'ly.